terça-feira, setembro 22, 2009

Guerras





Um diálogo entre o general Vida e o soldado 1/2 dia, seu chauffeur:

1/2 d: Bom dia meu General?
Vida: Bom dia 1/2 dia, que tal vai isso?
1/2 d: Vai tudo, vai tudo, muito obrigado e consigo?
Vida: Comigo!! Bom, se me perguntas se estou bem, estou, mas quanto ao ir tudo.... isso já não sei. Já foi muito, isso sim.
1/2 d: Não diga isso, o senhor é de aço, está aí para mais vinte guerras, também com a experiência que tem.
Vida: Está bem...
1/2 d: Sabe, agora que o referiu, estive a ver um programa sobre guerras, sobre situações de guerra melhor dizendo, o que ensinaram, o que tiraram, o que deram...
Vida: O que deram!?? Essa agora... bom, continua
1/2 d: Sim, está bem. Como eu estava a dizer, sobre guerra, situações de guerra. Como tal, lembrei-me de falar consigo sobre isso, uma vez que tem muita experiência.
Vida: Sim, tenho muita, infelizmente.
1/2 d: Infelizmente!??
Vida: Sim, infelizmente, porque o emprego da guerra é muito desagradável, no sentido de que só é bom quando estamos desempregados....
1/2 d: Não percebi..
Vida: Tolo, jovem e tolo... a guerra só é boa quando acaba, quando tudo se resolve, se bem que para muitos, talvez para a maioria, ela começa verdadeiramente quando acaba. Contudo, no sentido do interesse geral, as guerras são boas no momento em que acabam, quando tudo se resolve.
1/2 d: Mas todas!?
Vida: Sim, todas. Umas acabam pior, outras melhor, mas são todas boas assim que acabam. Aliás o melhor das guerras é o período que as medeia. Esse sim, é precioso e sabes porquê? Porque pode evitá-las.
1/2 d: Não sei se percebo mas, já agora diga-me general, qual a melhor guerra na qual participou?
Vida: Todas aquelas que já acabaram, umas bem, outras mal.
1/2 d: E a pior?
Vida: Pois, a pior, a pior é aquela que ainda não começou.
1/2 d: Acho que voltei a não perceber...
Vida: É normal, és jovem e tolo e tens de viver, tens de combater as tuas guerras. Vá, agora conduz, preciso de ir, temos uma guerra para combater.
1/2 d: Temos!!? temos onde? Mas o senhor não está desmobilizado?
Vida: Eu, nunca. Então não estou aqui, a falar contigo?
1/2 vida: Já não percebo nada...
Vida: Pois não, és jovem e tolo com muitas guerras para combater.

quinta-feira, setembro 17, 2009

Cartas de um Naufrago - 4ª entrada

Segue a quarta entrada do diário



«É manhã, isso é certo [...]

Estou sentado à beira de água a olhar para o horizonte. Tenho um pequeno resto de ramo na mão e rabisco o meu nome. A suave ondulação teima em apagá-lo. O dia está calmo, aliás os últimos dias têm sido de uma calma podre, se bem que nem sempre acompanhados pela paz de espírito tão desejada, mas esse é também o problema do desejo, o andar de braço dado com a ânsia, com a impaciência, acabando por nos perturbar. Contudo, pode dizer-se que a paz tem existido na maior parte do tempo. Sou como uma escarpa, de dia acariciada pelo doce e suave bater das ondas, e à noite, a espaços, fustigada por vagas, ainda, com alguma força.
Desde que ganhei forças para sair do torpor em que me encontrava da última vez em que te escrevi, dediquei-me a explorar a ilha na qual me encontro e por muito estranho que pareça, sinto-me como se sempre a tivesse conhecido, como se tudo isto me fosse familiar. Então, a oeste temos arribas e praias, quase sempre sacudidas pelo vento. Na maré baixa é maravilhoso, pois a maré desce a tal ponto, que a praia fica enorme e vêem-se as rochas outrora submersas pela maré alta. Podem apanhar-se pequenos peixes, mexilhões, caranguejos e lapas. A erosão do mar, faz com que algumas das rochas se assemelhem a pequenas banheiras e o cheiro a maresia é intenso e purificador. Ao final da tarde gosto de por lá passear e senti-lo entrar pelas narinas. Já com o chegar da noite, fica algo assustador, pois torna-se muito escuro.
A norte, a partir do interior centro, temos montes cobertos por Pinheiros, outrora frondosos, pois parece ter havido um incêndio feroz, Carvalhos e Eucaliptos. O calor é intenso durante o dia, tornando-se quase insuportável durante o meio da tarde, mas na maior parte dos dias, o frio à noite é agreste e muito seco. Espero não passar aqui o inverno, pois não sei o que farei.
Em ambos, sinais de caminhos outrora pisados, como se alguém tivesse aqui habitado durante bastante tempo. Tenho-me dedicado a percorrê-los, como se procurasse dar-lhes vida, compreender quem por aqui andou ou passou, pelos pequenos sinais e marcas, mas isso é impossível, por um lado, porque as marcas são insuficientes, por outro porque quem cá esteve ou por cá passou, já não está cá. Como tal, a única hipótese é dar-lhes nova vida, a minha vida, a minha cor, o meu sentido, tornando-os meus. Outra hipótese é percorrer outros inteiramente novos, o que neste caso corresponderia a criar novos trilhos. Tenho ocupado algumas horas dos meus dias a pensar qual será a melhor escolha e parece-me que vou misturar um pouco das duas, pois a partir de uma certa altura nas nossas vidas, já nada é absolutamente novo, no sentido que temos um passado, uma história já constituída e acredito que isso se alastra aos caminhos.
Agora que descrevi a ilha onde me encontro, e enquanto olho o horizonte, penso no quão frágeis nós somos. Este lugar, para mim imutável, sobrevivente ao tempo e que agora me serve de abrigo, mostra-me o quão na areia se inscreve a nossa existência e o quão mutável é a mesma. Eu mudo a cada hora, a cada dia, a cada mês, no máximo deixo vestígios, ao passo que estas pedras, estas árvores, estes penhascos, aos meus olhos, pouco preparados para velocidades universais, nunca mudarão. Se assim é, poderei chamá-las de minhas, teremos nós alguma coisa ou são as coisas, os tempos, os espaços que nos têm a nós?
Outras pessoas aqui estiveram, estiveram e partiram, por vontade própria, ou obrigadas, não sei, mas estiveram e partiram, de uma forma ou de outra, deixando apenas vestígios e no meio desta beleza enorme e assombrosa, essa é a nossa única hipótese, ficar ou partir, partir de uma forma ou de outra e nada mais. O espaço por nós ocupado é sempre efémero e curto e como tal, deve ser cuidadosamente examinado e escrutinado para que não se torne um espaço de escrita na areia, ainda mais que aquilo que por condição já é. Não temos nada senão a nós próprios. Essa é a melhor posse, esse é o melhor presente.
Encontro-me deste modo encerrado num espaço de reflexão, de pensamento, que é ao mesmo tempo um espaço de sobrevivência. Mas terá o ser humano outro espaço de constituição, que não o da reflexão e do pensamento? Não será essa uma tarefa para a vida? Somos como um quadro perpétuamente inacabado; mudam-se os componentes da tela, mas a essência fica lá, sempre em composição, um traço imperfeito que nem sempre pode ser emendado, uma paisagem inteira que não resiste à erosão do tempo.
Como é belo este espaço que me rodeia, tão hostil quanto acolhedor, profundamente contraditório, profundamente constituinte. No mesmo encerrado, medito sobre tudo e sobre todos, sabendo de antemão que por aí tudo mudou, é inevitável, faz parte da vida. Tenho de baptizar esta ilha, vou pensar num nome para lhe dar, pois sinto-me já intimamente ligado a ela e não quero resistir à tentação humana da apropriação que tantas vezes nos cega e nos torna desleixados. Loucos que nós somos, nunca temos nada e continuamos a dar nomes às coisas e a tê-las como nossas, quando nada mais são que fios de água a correr por entre os dedos.[...]
Por hoje termino, não cansado, mas termino. Vou agora levantar-me e percorrer mais uma vez a ilha. Sinto-me como que empurrado por uma mão invisível que me leva a querer andar e a procurar, o quê não sei, mas acredito que o bem e com ele a salvação, a salvação deste espaço que ainda que não me seja hostil, me limita.

[...]

ML»



sexta-feira, setembro 11, 2009

Curtas V - Even you Brutus


Assassinato de César, Anónimo

Há 9 anos atrás, num qualquer sítio de lazer, escutei este diálogo, entre "J" e "V" (estou farto do A e do B) que me deixou impressionado:

«V: - Olha, vou apresentar-te os meus projectos: pretendo viajar pelo mundo, fazer n workshops, provavelmente um curso no estrangeiro e aprender uma série de técnicas.
Depois de escutar tudo atentamente, sendo que por economia não identifiquei tudo o que escutei, e também, diga-se em abono da verdade, que metade não ouvi, "J", responde, em jeito de reparo.
J: - Olha, muito bem, fico muito contente, mas posso fazer-te uma pergunta?
V: - Sim, podes, todas.
J: - Segundo o que te ouvi dizer, acho que sei qual é a minha posição da tua vida.
V: - Que queres dizer com isso?
Pergunta "V", não conseguindo disfarçar o espanto face a tão estranha observação.
"J" com um sorriso, continua.
J: - Concluo, e não querendo de forma alguma limitar as tuas vontades, antes pelo contrário, tens todo o meu apoio, que eu para ti sou como o trabalho para o brasileiro.
V: - Que dizes?
empalidecendo.
E com um sorriso cândido, de quem respeita profundamente, "J" termina o seu raciocínio:
J: - Sim, estou 100 vezes atrás do último, é que nem o meu nome referiste.
"V", com um sorriso de assentimento, recheado de verdade, honestidade e coerência, responde:
V: - Sim, é verdade...
"J", levanta-se do sofá, acaricia-lhe a face, beija-a profundamente na testa e solta, enquanto que da cara de "V" já corre uma lágrima em fio:
J: - Não te vou deixar. No amor e na vida o mais fácil é desistir e eu não o vou fazer, até porque se o fizer, vou ficar contigo na mesma, só que ao longe.

Parece estranho, mas lembrei-me desta história a partir da sociedade contemporânea e da compreensão da relação ao trabalho. Assim, um primeiro apontamento prende-se com a noção de insistência e desistência. Segundo a minha perspectiva, só a segunda é voluntária, por incrível que pareça, pois que a primeira acontece mesmo quando não queremos, pois estamos longe de ser uma máquina.
Um segundo apontamento prende-se com esta forma de estar na vida que corresponde a uma completa e total desresponsabilização, na celebração do Eu na invisibilidade do outro. Tudo é usado e trocado, como quem salta de ramo em ramo, à velocidade da luz e mesmo a palavra, reflexo prioritário da nossa capacidade intelectual, impulsionador do desenvolvimento individual e geral é usada à toa. Dizendo o que se deseja, não fazendo o que se diz. Uma eterna vontade adiada, reflectida nas atitudes e nos processos. E face a isto digo: - Palavras, palavras leva-as o vento e ás vezes com a velocidade da borrasca; Viva o descartável, rapidamente reciclável e renovável.
Se a sociedade laboral contemporânea está na era da flexibilidade, porque não também o resto? Não é a sociedade Societal? Não será a lógica geral fruto das cambiantes particulares e vice-versa, obedecendo a um princípio incontornável de reflexividade? Mas e quando contarmos a nossa história, que imagem passaremos? A imagem de patetas saltitões, fábulas e fantasias operacionalizadas, que entre sms´s, emails e redes sociais virtuais, jogam ás cartas com valores e princípios expostos ao vento, já sem o escudo da boa-fé e sem qualquer pudor. Quem hoje é A, amanhã é B e tudo entre sorrisos e abraços regados com: "- Olá.... mas....? Aí sim, mas então!....?? Tudo bem, fizeste bem". Faz lembrar um jogo de futebol, muda-se a táctica, levanta-se a placa, faz-se a substituição e é a loucura.
Mas tal como no jogo de futebol, onde ás vezes a substituição é mal feita, ou os adeptos não gostam por este ou aquele motivo, invocando assim a ausência de linearidade e de lógica, pois há sempre o domínio do acaso fruto da imprevisibilidade , na vida nem tudo é mau, e existem as excepções, que nos dão lições de vida, as excepções que nos prostram, de forma positiva entenda-se, face à nossa condição e nos lembram o quão humanos (ainda) podemos ser, porque pura e simplesmente custa-lhes desistir de si. São os bons treinadores.

domingo, setembro 06, 2009

Cartas de um Naufrago - 3ª entrada

Segue a terceira entrada do diário:


«[......................] Algures, ao final da tarde, julgo eu

Minha querida,

"- Minha querida!??" Se bem me lembro, e tempo é o que me sobra para as minhas lembranças, questionei na minha última carta esta forma de me referir a ti, mas agora parece-me absurdo o tempo perdido nessa consideração, ou até mesmo devotar-lhe mais uma segundo sequer, pois num certo sentido, não tens porque deixar de sê-lo, pois, ironias à parte, é uma expressão usada quer por quem gosta de nós (ou de quem nós gostamos), quer por quem nos quer bem (ou a quem nós queremos bem). Acreditando eu que cada vez menos cabes na primeira categoria, creio contudo que nunca abandonarás a segunda. Bom e lá estou eu a cair na armadilha da crença, na armadilha desta fé inabalável na imagem ou ideia que tenho ou retenho de outrem. Contudo, não sei viver nem ser de outra forma, lamento e peço ao mundo que me desculpe, pois creio, lá está a crença outra vez, que não está e nunca estará bem sistematizado este meu pessimismo antropológico. [...]
Não te posso precisar quando cheguei à ilha, pois cheguei ao final do dia, de um dos muitos incontabilizados dias, exausto, completamente exausto. Assim que coloquei o pé em terra firme, assim que enterrei os dedos na areia quente e húmida, deixei-me cair e ficar, como que dormente, embalado num torpor típico de quem se abandona à sua sorte, ao "deus dará", única e exclusivamente preocupado em respirar, cada vez mais ciente do estado em que me encontrava, do estado em que me encontro. Agora que me começo a erguer, ainda que vergado sob o peso da minha circunstância, constato que nada mais fiz do que levantar-me quando tinha sede, ou quando tinha fome, pois bem junto à orla marítima existem umas árvores de fruto, que me foram alimentando.[...]
Estou assim, sentado de pernas cruzadas, a escrever-te estas linhas e medito sob a noção de destino. Porque estarei eu aqui encerrado? Que provação me está reservada? Melhor, estará o que quer que seja reservado a quem quer que seja? Existirá esse caminho pré-definido por um ser superior, que julga, condenando ou premiando? Existirá um "percursor sombrio" - nos dizeres do ateu francês, pai da Logique du Sens - que se constitui como um novelo de lã, paralelamente à linha da nossa vida, revelando-se a cada momento de queda no mundo, quer ela ocorra por infortúnio ou por felicidade? Não sei, não consigo responder a estas questões. A minhas conversas com Deus são sempre monólogos, os sinais são dispares. A própria noção de sinal depende das considerações acima feitas, pois há sinal quando há predefinição de um trajecto, caso contrário é um mero acontecer! Meu Deus, serei eu, ser pensante, pai da moral, da ética, da religião, da política, da sociedade, um mero acontecer, um puro e só estar aqui? Por outro lado, tendo tudo o supramencionado, serei eu uma marioneta, e se sim, de que me vale todo o meu espólio, todas as minhas capacidades? Em suma, na lógica deste status quo, de que vale a experiência e o saber?
Sempre que me enredo nestes caminhos, o meu raciocínio é sempre o mesmo. Somos o fabricante da nossa existência, somos maquinista e timoneiro, impulso e guia. Não temos controlo total é um facto, pois estamos inseridos em território alheio, não escolhido e hostil, mas temos posse da nossa razão e da nossa vontade. Mas, e Deus, onde fica Deus e o destino? Onde fica o ser a quem apelo em horas de agonia e desespero? Deus é crença, é fé, Deus é a minha mão, o meu querer, a minha razão, a minha consciência, e essa sim, é a grande julgadora do que faço e do que sofro, e só por insuficiência de condição humana, jogamos nas costas do destino o preço do erro ou a glória da ventura. Deus diz-me: "- Dou-te a razão e a vontade, dou-te o poder de agir. Como não deves fazer, recomendo, mas deixo a ti o poder de exercer a tua vontade, para que construas a tua vida, da forma que considerares mais correcta e mais justa, nunca perdendo de vista o outro."
Só eu sei o que faço, só eu me condeno, só eu me recompenso, só eu repouso tranquilo com as estrelas como tecto, só eu repouso aflito, angustiado, enredado no meu próprio fazer, a que chamo de acontecer. Se é facto que não sou eu a minha moral, também o é que sou eu a minha ética, mas que a mesma não deve nunca esquecer o diálogo moral. Verdade, honestidade, coerência, este é o meu Deus e à sombra destes devo eu edificar a minha casa.
[...]
Aceito assim esta provação, e se parte de mim não consegue sair da ideia que a mesma é infligida por castigo divino, a outra parte do meu ser aceita-a como consequência das minhas acções, tendo sido as mesmas exercício da minha vontade e do meu querer. Pena que não me oiças, tenho tanta pena, mas o tempo corre, não para de correr. Resta-me agora decifrar o porquê desse meu querer, e tempo, ah tempo, esse é o que não falta.
Estou cansado, devastadoramente cansado. Vou deixar-me ficar aqui mais um bocado, a ouvir o mar bater na areia, cadenciado como está, enquanto aprecio a lua, embora não veja ainda as estrelas. Sinto ainda o peso, o amargo peso das quatro paredes. Contudo, sinto que vou consegui-lo dentro em breve, aliás acredito mesmo que vou consegui-lo, pois que alternativa tenho eu?

Teu,

ML»



quarta-feira, setembro 02, 2009

Cartas de um Naufrago - 2ª entrada

Boa noite,

Segue a segunda entrada do diário denominado, Cartas de um Naufrago


«Algures, 2ª cart.........

Minha querida,

Será que ainda te poderei considerar como tal, é a questão que se levanta neste dia que amanheceu muito cinzento, no seguimento de como terminou o anterior. Sim, é um facto, nada mais está a ser isto que uma dura e lenta sucessão de dias, muito iguais, muito sem nada, ironicamente preenchidos de nada. Como é que o nada preenche qualquer coisa? Não ligues, divago, é do Sol, é o fruto da lassidão dos dias estendido neste bote. Quando estamos desocupados, pensamos muito e agimos pouco. Contrariamente aos gregos que pensavam para agir, nós agimos para pensar e quando acontece o contrário, é o desespero.
Escrevo-te numa pausa entre rudes e esforçadas remadas, pois tomei a decisão de remar na direcção da ilha, nem que isso me consuma, aqui parado é que não. No ser humano, mesmo a desistência corresponde a uma tomada de posição. Quer seja para parar ou para andar, temos de decidi-lo, que por si só já é acção, e como a nossa bios nunca para, desistir é também uma ilusão, pois corresponde única e exclusivamente a estar parado, sem fazer nada, e isso não. Se tiver de tombar, que tombe a procurar salvar-me, já que tu não o podes fazer.

Se o mar não me ilude, e acredito que não o esteja a fazer, acredito que dentro de algumas horas consiga finalmente pisar terra firme, mas terra firme, outra ironia, haverá notícia de terra firme? Estando nós inquietos, sem convicção, longe do nosso porto de abrigo, haverá terra firme? São para ti estas perguntas, se bem que não me consigas responder, mas são para ti. É contigo que falo quando procuro deixar-me dormir a olhar para as estrelas, é contigo que falo quando procuro perceber esta louca precipitação de eventos, mas não consigo ouvir a resposta. Estás longe, lá tão longe, cada vez mais angustiantemente longe e eu sem nada poder fazer, pois se é um facto que consigo remar até aquela ilha, também é um facto que me está vedado passar da mesma. Todo um muro de azul (ou negro??)está erguido entre nós e tudo o que me resta é isto, pedaços de nada, farrapos, lembranças, duras chagas vivas entranhadas em todo o meu ser abandonado e perdido, aqui despejadas em palavras ocas que por vezes nem de consolo ou libertação servem, antes reflectindo a agrura vivida.

Estou cansado, muito [...]sado[....].
Até breve, embora comece a questi[...] as minhas próprias palavras.

Teu, sempre

ML

domingo, agosto 30, 2009

Hoje descobri

Salvador Dali, O Sacramento na Última Ceia


E hoje descobri que somos mesmo uma poesia da contradição, um cirandar entre o hoje e o amanhã, entre o que tudo é, e que depois já nada é. E hoje descobri que fiz também aquilo que critiquei e critico, que a aflição traz a tentação, que a ânsia de saber nos leva por caminhos não antes pisados. Hoje descobri que sou igual, sim, no sofrimento somos todos iguais, humanos, curiosos, aflitos, impacientes, desesperados. Hoje descobri que ninguém, ou muito poucos, merecem os altos padrões que se lhes reconhecem, a que muitas vezes se auto-propõem, e que valores defendidos, são muitas vezes traídos pelos próprios apologistas dos mesmos. Hoje descobri que o abandono é aparentemente fácil, que as palavras nada valem - mesmo aquelas que nos remetem para o intemporal - que são como traços nos quadros, solúveis, que são usadas como ases no póquer. Hoje descobri que mais fácil é dizer que fazer. Hoje descobri que do dia para a noite se passa do oito para o oitenta e do oitenta para o oito. Hoje descobri que toda a gente mente e omite, mas que nem todos abandonam os seus. Hoje descobri que mesmo os melhores, ou tidos como melhores, desistem e traem-se a si próprios e aos outros. Hoje descobri que quem faz uma, faz duas, embora eu continue teimosamente a defender e a acreditar no oposto. Hoje descobri que o António Barreto tinha razão ao apontar como crítica o facto de estarmos numa época de "Moral geral" e "Éticas privadas", que o que importa, na contemporaneidade, "é estar de bem com a nossa consciência." Hoje descobri que tal como ele, estou de mal com a minha e estarei sempre, pois há um longo caminho a percorrer e o diálogo interior não pode nunca cessar nem dar-se por satisfeito. Hoje descobri e estou triste, triste pois perdi mais um pouco de fé nas pessoas, fé inclusive no facto de serem melhores que eu. Hoje descobri que tenho de ser melhor. Hoje descobri, que tal como o poeta, somos todos uns fingidores; músicas, poemas, "scraps", são tudo preenchimentos de espaços próprios, por logro transmitido aos outros, como se fossem deles. A dor, o regozijo, a alegria, o amor, são sempre nossos, sendo que os demais, são apenas interesses, interesses que se tornam nossos e que se encaixam. Hoje confirmei que mais importante que ser fiel é ser leal.

Hoje descobri e se estou mais lúcido, também não é menos verdade que estou mais pobre, muito mais pobre.

segunda-feira, agosto 24, 2009

Cartas de um Naufrago - 1ª entrada

Boa noite,

Dando seguimento ao último post, e tendo já eu decifrado, julgo eu, algumas das partes mais afectadas do diário, escrito sob a forma de cartas, venho aqui colocar ao vosso dispor a primeira entrada, chamemos-lhe assim, do diário. Sempre que apareçam reticências ou parêntesis rectos, significa que não consegui compreender o que estava escrito e decidi não fazer conjecturas, por forma a ser o mais fiel possível ao achado. Espero que sejam do vosso agrado.

«Algures, 24 de Agosto .........,

Minha querida,

Não sei que horas serão, pois começo a perder o rasto ao tempo, ao tempo cronológico, já que quanto ao físico, começa a estar bem vincado no meu corpo e na minha alma, uma vez que nesta situação de privação, os limites do meu corpo são também os meus, já me valendo de pouco o raciocínio e a razão
.
Agora que passaram cerca de 30 dias, acho eu, desde que nos vimos pela última vez, antes de ter partido para esta viagem absurda, e aproveitando tudo o que tenho à mão passível de ser utilizado, decidi escrever-te prevenindo o facto de poder não ser resgatado a tempo. Sim, concordo, sei que tudo isto poderá nunca ser encontrado, mas também sei que não posso ficar aqui inerte sem fazer nada, para além do que, numa situação de desespero, ou na iminência do mesmo, toda a nossa alma aponta para a pessoa que amamos, tal como se fosse o nosso anjo da guarda. Do mesmo modo, não quero deixar nada por dizer, pois posso não ter outra oportunidade ou meio de fazê-lo. Não estranhes contudo não teres muito que ler a cada carta, ou se as datas forem muito espaçadas, é que o cansaço e o desânimo são muito fortes e tiram-me as forças para meditar e raciocinar e bem sabes tu o quão gosto de fazer ambas.
Como deves saber, o acidente aconteceu bem pouco depois de nos termos despedido naquela noite. Foi uma tempestade tão forte, quão inesperada, de tal ordem, que nada valeram os esforços para manter o barco a navegar. Foi como se o mesmo tivesse sido atingido por tiros de peça de artilharia, tal como as que eram usadas nas ferozes batalhas do Pacífico, durante a Segunda Guerra mundial. No meio do caos, consegui fugir com algumas coisas para dentro de um pequeno salva vidas e aqui ando há já cerca de 30 dias, perdido nesta imensidão azul. Tenho avistado uma ilha ao longe, julgo eu, pois não ponho de parte a hipótese de serem alucinações, da qual me aproximo e afasto conforme o sabor da corrente, pois não me encontro em condições de fazer muito contra essa aleatoriedade. Assim, vou aguardando na esperança de que o vento ou uma maré favorável me conduza a bom porto, até porque a água doce começa a escassear.

Por hoje fico-me por aqui, pois foi um dia intenso, de muitas lembranças e saudades. Mesmo com os lábios ressequidos pelo sol e pelo sal, dava tudo para poder fechar os olhos e sentir o toque suave dos teus lábios nos meus. Sonho, eu sei, mas que mais me resta estando eu perdido nesta imensidão e com pouca certeza do rumo que levo!?
Estou cansado, muito cansado [....]. Até breve, se Deus assim o entender.

PS: Meu amor, para que saibas tu e só tu que sou eu e quem sou eu, assino com as iniciais do nome que escolhemos para a nossa filha, ML.»

Espero em breve publicar a segunda entrada.

quinta-feira, agosto 20, 2009

Cartas de um Naufrago - Introdução


Message in a Bottle, acessível em:
http://rookery2.viary.com/storagev12/1006500/1006532_da14_625x1000.jpg

Boa noite,

Este post dará início, provavelmente a uma história que nada terá de novo, mas que também nada terá de velho, nem hoje, nem nunca, pois trata-se de falar de amor. O peculiar aqui, não é o assunto em questão mas a forma como será tratado, ou neste caso, retratado. Passo a explicar. O autor deste blog, numa das suas muitas incursões pela praia, onde dá grandes passeios a pé pela hora da maré baixa, encontrou uma garrafa carregada com cartas, isso mesmo cartas, não uma ao acaso, mas várias, dando a entender que se trata de um diário, que em face de um destino nada favorável, em desespero de causa foi jogado ao mar, dentro de uma garrafa, como já referi. Parece incrível em pleno Século XXI, mas é verdade.

Não me alongarei muito nesta introdução, e deixo apenas dois apontamentos. Primeiro a explicação do uso da expressão "provavelmente". A mesma foi usada, não como recurso com o intuito de indicar um suspense, mas antes porque os sinais contidos nas cartas têm de ser interpretados correctamente, pois há todo um desgaste sofrido pelo diário. O segundo apontamento tem a ver com o título escolhido pelo autor deste blog, a saber, Cartas de um Naufrago, que parece ao autor fazer todo o sentido e duplamente, isto é, naufrágio do ponto de vista físico e naufrágio do ponto de vista metafísico.

Espero que seja do agrado dos seguidores deste blog esta tarefa que tomei em mãos e se por ventura reconhecerem a história, digam.

Duas curiosidades, a assinatura escolhida pelo autor do diário e o nome com o qual baptizou a ilha onde se viu perdido. Assim escreve no final da primeira carta:

"Meu amor, para que saibas tu e só tu que sou eu e quem sou eu, assino com as iniciais do nome que escolhemos para a nossa filha, ML"

Já pelo meio da 5ª, 6ª carta escreve:

"Vejo-me assim perdido e encontrado numa ilha chamada Eu, sim é o melhor nome que lhe posso dar.

Teu, sempre

ML"


domingo, agosto 09, 2009

O Trabalho como elemento estruturante do Ser; Bios e Ethos


«Para a maioria dos indivíduos o trabalho é, de todas as actividades, a que ocupa a maior parte das suas vidas. Associamos, frequentemente, a noção de trabalho a escravidão – um conjunto de tarefas que pretendemos minimizar e, se possível, a que queremos escapar. O trabalho é mais do que escravidão, ou as pessoas não se sentiriam tão perdidas e desorientadas quando ficam desempregadas. […] Nas sociedades modernas ter um emprego é importante para se preservar o respeito por si próprio. Mesmo quando as condições de trabalho são relativamente desagradáveis e as tarefas a realizar monótonas, o trabalho tende a ser um elemento estruturante na constituição psicológica das pessoas e no ciclo das suas actividades.»

GIDDENS, Anthony, Sociologia, trad., Alexandra Figueiredo, Ana Patrícia Baltazar, Catarina Silva, Patrícia Matos e Vasco Gil, FCG, Lisboa, 2007, 5ª Edição, pag. 377


"Quando reflectimos sobre a disposição que a maioria de nós, seres humanos, os ditos normais ou funcionais, aparenta ter perante a existência, que se manifesta na constituição da sua vida, não podemos deixar de nos interrogar acerca daquilo que nos move, pois parece ser um facto que caminhamos para lado nenhum. Que pretendemos nós dizer com isto? A nossa vida, não tendo nada garantido, tem duas coisas muito bem definidas, nascemos, estamos no mundo, e outra, que quer nós façamos o que quer que seja, acontecerá um dia, ou seja, vamos morrer. E uma coisa é certa: podemos nem todos viver, mas todos morremos.

O que deriva desta afirmação é a descoberta da vida não como gratuita, mas como possibilidade de constituição. Mas, paralelamente, não parece estranha a constituição disto a que chamamos vida? Não seria melhor fazer o que nos apetecesse e esperar pela hora? A nossa racionalidade diz-nos que não e ao longo da nossa evolução desenvolvemos uma relação estreita com isso a que chamamos de actividade, seja ela intelectual ou física, que conduz ou leva à constituição da nossa vida, chegando mesmo a identificar-se com a mesma. A vida é prática. Neste sentido, somos reconhecidos socialmente, do ponto de vista positivo ou negativo, quando fazemos qualquer coisa, somos incluídos ou marginalizados socialmente em virtude do curso que damos às nossas actividades, em virtude do rumo que damos à nossa vida.

Foi neste pressuposto que as sociedades se constituíram desde os primórdios da humanidade. Este impulso para fazer coisas é algo que nos é intrínseco, e as sociedades contemporâneas, especialmente na sequência da segunda guerra mundial onde os estados assumiram um papel primordial na reconstrução e reestruturação das sociedades, com maior ou menor intervenção, seguindo políticas mais ou menos liberais, mais ou menos proteccionistas, parecem ter definido para o homem comum o caminho da constituição da sua vida, como se pela mão o guiasse e protegesse. Neste sentido, podemos dizer que existem uma série de passos a dar para que a sociedade nos aceite e nos reconheça como seu membro, e ao mesmo tempo nos permite fazer uso daquilo que nos pode dar como cidadãos de direito, por hipótese, protecção social, judicial, fiscal, etc. Os passos foram mudando ao longo dos tempos, conforme também as sociedades foram evoluindo. Aquele que nos cumpre analisar aqui é o trabalho e a centralidade que o mesmo ocupa na vida do Homem, da pessoa e do cidadão.

O homem tem uma relação profunda com o trabalho, com o produzir coisas. Da simples e básica subsistência, à sociedade de topo contemporânea do mundo desenvolvido, aquilo que fazemos e como o fazemos ocupa um espaço central na nossa vida. E isto porquê? Porque nos proporciona estabilidade no presente e nos dá esperança para o futuro.

Do ponto de vista garantia do futuro individual, o rendimento que nos proporciona, a inclusão social que promove, permite ao homem gozar da protecção social do estado providência, mas também construir a sua própria providência nos estados mais liberais, recorrendo a instrumentos modernos de poupança. Mas não só. Do ponto de vista colectivo, é o trabalho que permite que possamos pensar em ter uma casa, um carro, em constituir família, ter filhos, em preparar os primeiros passos desses mesmos filhos.

É no trabalho que gastamos grande parte da nossa vida, mas também é o trabalho que nos permite alguma tranquilidade quando pensamos naqueles que temos mais próximos. Do mesmo modo, é pelo trabalho que nos sentimos integrados e como pertencentes ao meio que nos rodeia e na ausência do mesmo sentimos o oposto. Quem já passou por isso, sabe o quão dramático é passar pela situação de desempregado, quer tendo direito aos subsídios sociais ou não. Ansiar por uma entrevista, esperar que um qualquer recrutador “vá com a nossa cara e aposte em nós” é uma experiência desgastante e que nos faz olhar para o mundo desesperados, pois nada podemos fazer sem trabalho e sem rendimento; todas as portas se fecham [...] "


NEVES, EDUARDO, Da Sociedade Industrial à Sociedade Pós-Industrial: Individualização, Risco e Descontinuidades Biográficas, introdução do ensaio apresentado à cadeira de Sociologia do Trabalho, semestre de inverno, , ISCTE, Mestrado em Ciências do Trabalho, 2007/2008