Segue a terceira entrada do diário
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«[......................] Algures, ao final da tarde, julgo eu
Minha querida,
"- Minha querida!??" Se bem me lembro, e tempo é o que me sobra para as minhas lembranças, questionei na minha última carta esta forma de me referir a ti, mas agora parece-me absurdo o tempo perdido nessa consideração, ou até mesmo devotar-lhe mais uma segundo sequer, pois num certo sentido, não tens porque deixar de sê-lo, pois, ironias à parte, é uma expressão usada quer por quem gosta de nós (ou de quem nós gostamos), quer por quem nos quer bem (ou a quem nós queremos bem). Acreditando eu que cada vez menos cabes na primeira categoria, creio contudo que nunca abandonarás a segunda. Bom e lá estou eu a cair na armadilha da crença, na armadilha desta fé inabalável na imagem ou ideia que tenho ou retenho de outrem. Contudo, não sei viver nem ser de outra forma, lamento e peço ao mundo que me desculpe, pois creio, lá está a crença outra vez, que não está e nunca estará bem sistematizado este meu pessimismo antropológico. [...]
Não te posso precisar quando cheguei à ilha, pois cheguei ao final do dia, de um dos muitos incontabilizados dias, exausto, completamente exausto. Assim que coloquei o pé em terra firme, assim que enterrei os dedos na areia quente e húmida, deixei-me cair e ficar, como que dormente, embalado num torpor típico de quem se abandona à sua sorte, ao "deus dará", única e exclusivamente preocupado em respirar, cada vez mais ciente do estado em que me encontrava, do estado em que me encontro. Agora que me começo a erguer, ainda que vergado sob o peso da minha circunstância, constato que nada mais fiz do que levantar-me quando tinha sede, ou quando tinha fome, pois bem junto à orla marítima existem umas árvores de fruto, que me foram alimentando.[...]
Estou assim, sentado de pernas cruzadas, a escrever-te estas linhas e medito sob a noção de destino. Porque estarei eu aqui encerrado? Que provação me está reservada? Melhor, estará o que quer que seja reservado a quem quer que seja? Existirá esse caminho pré-definido por um ser superior, que julga, condenando ou premiando? Existirá um "percursor sombrio" - nos dizeres do ateu francês, pai da Logique du Sens - que se constitui como um novelo de lã, paralelamente à linha da nossa vida, revelando-se a cada momento de queda no mundo, quer ela ocorra por infortúnio ou por felicidade? Não sei, não consigo responder a estas questões. A minhas conversas com Deus são sempre monólogos, os sinais são dispares. A própria noção de sinal depende das considerações acima feitas, pois há sinal quando há predefinição de um trajecto, caso contrário é um mero acontecer! Meu Deus, serei eu, ser pensante, pai da moral, da ética, da religião, da política, da sociedade, um mero acontecer, um puro e só estar aqui? Por outro lado, tendo tudo o supramencionado, serei eu uma marioneta, e se sim, de que me vale todo o meu espólio, todas as minhas capacidades? Em suma, na lógica deste status quo, de que vale a experiência e o saber?
Sempre que me enredo nestes caminhos, o meu raciocínio é sempre o mesmo. Somos o fabricante da nossa existência, somos maquinista e timoneiro, impulso e guia. Não temos controlo total é um facto, pois estamos inseridos em território alheio, não escolhido e hostil, mas temos posse da nossa razão e da nossa vontade. Mas, e Deus, onde fica Deus e o destino? Onde fica o ser a quem apelo em horas de agonia e desespero? Deus é crença, é fé, Deus é a minha mão, o meu querer, a minha razão, a minha consciência, e essa sim, é a grande julgadora do que faço e do que sofro, e só por insuficiência de condição humana, jogamos nas costas do destino o preço do erro ou a glória da ventura. Deus diz-me: "- Dou-te a razão e a vontade, dou-te o poder de agir. Como não deves fazer, recomendo, mas deixo a ti o poder de exercer a tua vontade, para que construas a tua vida, da forma que considerares mais correcta e mais justa, nunca perdendo de vista o outro."
Só eu sei o que faço, só eu me condeno, só eu me recompenso, só eu repouso tranquilo com as estrelas como tecto, só eu repouso aflito, angustiado, enredado no meu próprio fazer, a que chamo de acontecer. Se é facto que não sou eu a minha moral, também o é que sou eu a minha ética, mas que a mesma não deve nunca esquecer o diálogo moral. Verdade, honestidade, coerência, este é o meu Deus e à sombra destes devo eu edificar a minha casa.[...]
Aceito assim esta provação, e se parte de mim não consegue sair da ideia que a mesma é infligida por castigo divino, a outra parte do meu ser aceita-a como consequência das minhas acções, tendo sido as mesmas exercício da minha vontade e do meu querer. Pena que não me oiças, tenho tanta pena, mas o tempo corre, não para de correr. Resta-me agora decifrar o porquê desse meu querer, e tempo, ah tempo, esse é o que não falta.
Estou cansado, devastadoramente cansado. Vou deixar-me ficar aqui mais um bocado, a ouvir o mar bater na areia, cadenciado como está, enquanto aprecio a lua, embora não veja ainda as estrelas. Sinto ainda o peso, o amargo peso das quatro paredes. Contudo, sinto que vou consegui-lo dentro em breve, aliás acredito mesmo que vou consegui-lo, pois que alternativa tenho eu?
Teu,
ML»