quinta-feira, setembro 17, 2009

Cartas de um Naufrago - 4ª entrada

Segue a quarta entrada do diário



«É manhã, isso é certo [...]

Estou sentado à beira de água a olhar para o horizonte. Tenho um pequeno resto de ramo na mão e rabisco o meu nome. A suave ondulação teima em apagá-lo. O dia está calmo, aliás os últimos dias têm sido de uma calma podre, se bem que nem sempre acompanhados pela paz de espírito tão desejada, mas esse é também o problema do desejo, o andar de braço dado com a ânsia, com a impaciência, acabando por nos perturbar. Contudo, pode dizer-se que a paz tem existido na maior parte do tempo. Sou como uma escarpa, de dia acariciada pelo doce e suave bater das ondas, e à noite, a espaços, fustigada por vagas, ainda, com alguma força.
Desde que ganhei forças para sair do torpor em que me encontrava da última vez em que te escrevi, dediquei-me a explorar a ilha na qual me encontro e por muito estranho que pareça, sinto-me como se sempre a tivesse conhecido, como se tudo isto me fosse familiar. Então, a oeste temos arribas e praias, quase sempre sacudidas pelo vento. Na maré baixa é maravilhoso, pois a maré desce a tal ponto, que a praia fica enorme e vêem-se as rochas outrora submersas pela maré alta. Podem apanhar-se pequenos peixes, mexilhões, caranguejos e lapas. A erosão do mar, faz com que algumas das rochas se assemelhem a pequenas banheiras e o cheiro a maresia é intenso e purificador. Ao final da tarde gosto de por lá passear e senti-lo entrar pelas narinas. Já com o chegar da noite, fica algo assustador, pois torna-se muito escuro.
A norte, a partir do interior centro, temos montes cobertos por Pinheiros, outrora frondosos, pois parece ter havido um incêndio feroz, Carvalhos e Eucaliptos. O calor é intenso durante o dia, tornando-se quase insuportável durante o meio da tarde, mas na maior parte dos dias, o frio à noite é agreste e muito seco. Espero não passar aqui o inverno, pois não sei o que farei.
Em ambos, sinais de caminhos outrora pisados, como se alguém tivesse aqui habitado durante bastante tempo. Tenho-me dedicado a percorrê-los, como se procurasse dar-lhes vida, compreender quem por aqui andou ou passou, pelos pequenos sinais e marcas, mas isso é impossível, por um lado, porque as marcas são insuficientes, por outro porque quem cá esteve ou por cá passou, já não está cá. Como tal, a única hipótese é dar-lhes nova vida, a minha vida, a minha cor, o meu sentido, tornando-os meus. Outra hipótese é percorrer outros inteiramente novos, o que neste caso corresponderia a criar novos trilhos. Tenho ocupado algumas horas dos meus dias a pensar qual será a melhor escolha e parece-me que vou misturar um pouco das duas, pois a partir de uma certa altura nas nossas vidas, já nada é absolutamente novo, no sentido que temos um passado, uma história já constituída e acredito que isso se alastra aos caminhos.
Agora que descrevi a ilha onde me encontro, e enquanto olho o horizonte, penso no quão frágeis nós somos. Este lugar, para mim imutável, sobrevivente ao tempo e que agora me serve de abrigo, mostra-me o quão na areia se inscreve a nossa existência e o quão mutável é a mesma. Eu mudo a cada hora, a cada dia, a cada mês, no máximo deixo vestígios, ao passo que estas pedras, estas árvores, estes penhascos, aos meus olhos, pouco preparados para velocidades universais, nunca mudarão. Se assim é, poderei chamá-las de minhas, teremos nós alguma coisa ou são as coisas, os tempos, os espaços que nos têm a nós?
Outras pessoas aqui estiveram, estiveram e partiram, por vontade própria, ou obrigadas, não sei, mas estiveram e partiram, de uma forma ou de outra, deixando apenas vestígios e no meio desta beleza enorme e assombrosa, essa é a nossa única hipótese, ficar ou partir, partir de uma forma ou de outra e nada mais. O espaço por nós ocupado é sempre efémero e curto e como tal, deve ser cuidadosamente examinado e escrutinado para que não se torne um espaço de escrita na areia, ainda mais que aquilo que por condição já é. Não temos nada senão a nós próprios. Essa é a melhor posse, esse é o melhor presente.
Encontro-me deste modo encerrado num espaço de reflexão, de pensamento, que é ao mesmo tempo um espaço de sobrevivência. Mas terá o ser humano outro espaço de constituição, que não o da reflexão e do pensamento? Não será essa uma tarefa para a vida? Somos como um quadro perpétuamente inacabado; mudam-se os componentes da tela, mas a essência fica lá, sempre em composição, um traço imperfeito que nem sempre pode ser emendado, uma paisagem inteira que não resiste à erosão do tempo.
Como é belo este espaço que me rodeia, tão hostil quanto acolhedor, profundamente contraditório, profundamente constituinte. No mesmo encerrado, medito sobre tudo e sobre todos, sabendo de antemão que por aí tudo mudou, é inevitável, faz parte da vida. Tenho de baptizar esta ilha, vou pensar num nome para lhe dar, pois sinto-me já intimamente ligado a ela e não quero resistir à tentação humana da apropriação que tantas vezes nos cega e nos torna desleixados. Loucos que nós somos, nunca temos nada e continuamos a dar nomes às coisas e a tê-las como nossas, quando nada mais são que fios de água a correr por entre os dedos.[...]
Por hoje termino, não cansado, mas termino. Vou agora levantar-me e percorrer mais uma vez a ilha. Sinto-me como que empurrado por uma mão invisível que me leva a querer andar e a procurar, o quê não sei, mas acredito que o bem e com ele a salvação, a salvação deste espaço que ainda que não me seja hostil, me limita.

[...]

ML»



Sem comentários: