terça-feira, setembro 22, 2009

Guerras





Um diálogo entre o general Vida e o soldado 1/2 dia, seu chauffeur:

1/2 d: Bom dia meu General?
Vida: Bom dia 1/2 dia, que tal vai isso?
1/2 d: Vai tudo, vai tudo, muito obrigado e consigo?
Vida: Comigo!! Bom, se me perguntas se estou bem, estou, mas quanto ao ir tudo.... isso já não sei. Já foi muito, isso sim.
1/2 d: Não diga isso, o senhor é de aço, está aí para mais vinte guerras, também com a experiência que tem.
Vida: Está bem...
1/2 d: Sabe, agora que o referiu, estive a ver um programa sobre guerras, sobre situações de guerra melhor dizendo, o que ensinaram, o que tiraram, o que deram...
Vida: O que deram!?? Essa agora... bom, continua
1/2 d: Sim, está bem. Como eu estava a dizer, sobre guerra, situações de guerra. Como tal, lembrei-me de falar consigo sobre isso, uma vez que tem muita experiência.
Vida: Sim, tenho muita, infelizmente.
1/2 d: Infelizmente!??
Vida: Sim, infelizmente, porque o emprego da guerra é muito desagradável, no sentido de que só é bom quando estamos desempregados....
1/2 d: Não percebi..
Vida: Tolo, jovem e tolo... a guerra só é boa quando acaba, quando tudo se resolve, se bem que para muitos, talvez para a maioria, ela começa verdadeiramente quando acaba. Contudo, no sentido do interesse geral, as guerras são boas no momento em que acabam, quando tudo se resolve.
1/2 d: Mas todas!?
Vida: Sim, todas. Umas acabam pior, outras melhor, mas são todas boas assim que acabam. Aliás o melhor das guerras é o período que as medeia. Esse sim, é precioso e sabes porquê? Porque pode evitá-las.
1/2 d: Não sei se percebo mas, já agora diga-me general, qual a melhor guerra na qual participou?
Vida: Todas aquelas que já acabaram, umas bem, outras mal.
1/2 d: E a pior?
Vida: Pois, a pior, a pior é aquela que ainda não começou.
1/2 d: Acho que voltei a não perceber...
Vida: É normal, és jovem e tolo e tens de viver, tens de combater as tuas guerras. Vá, agora conduz, preciso de ir, temos uma guerra para combater.
1/2 d: Temos!!? temos onde? Mas o senhor não está desmobilizado?
Vida: Eu, nunca. Então não estou aqui, a falar contigo?
1/2 vida: Já não percebo nada...
Vida: Pois não, és jovem e tolo com muitas guerras para combater.

quinta-feira, setembro 17, 2009

Cartas de um Naufrago - 4ª entrada

Segue a quarta entrada do diário



«É manhã, isso é certo [...]

Estou sentado à beira de água a olhar para o horizonte. Tenho um pequeno resto de ramo na mão e rabisco o meu nome. A suave ondulação teima em apagá-lo. O dia está calmo, aliás os últimos dias têm sido de uma calma podre, se bem que nem sempre acompanhados pela paz de espírito tão desejada, mas esse é também o problema do desejo, o andar de braço dado com a ânsia, com a impaciência, acabando por nos perturbar. Contudo, pode dizer-se que a paz tem existido na maior parte do tempo. Sou como uma escarpa, de dia acariciada pelo doce e suave bater das ondas, e à noite, a espaços, fustigada por vagas, ainda, com alguma força.
Desde que ganhei forças para sair do torpor em que me encontrava da última vez em que te escrevi, dediquei-me a explorar a ilha na qual me encontro e por muito estranho que pareça, sinto-me como se sempre a tivesse conhecido, como se tudo isto me fosse familiar. Então, a oeste temos arribas e praias, quase sempre sacudidas pelo vento. Na maré baixa é maravilhoso, pois a maré desce a tal ponto, que a praia fica enorme e vêem-se as rochas outrora submersas pela maré alta. Podem apanhar-se pequenos peixes, mexilhões, caranguejos e lapas. A erosão do mar, faz com que algumas das rochas se assemelhem a pequenas banheiras e o cheiro a maresia é intenso e purificador. Ao final da tarde gosto de por lá passear e senti-lo entrar pelas narinas. Já com o chegar da noite, fica algo assustador, pois torna-se muito escuro.
A norte, a partir do interior centro, temos montes cobertos por Pinheiros, outrora frondosos, pois parece ter havido um incêndio feroz, Carvalhos e Eucaliptos. O calor é intenso durante o dia, tornando-se quase insuportável durante o meio da tarde, mas na maior parte dos dias, o frio à noite é agreste e muito seco. Espero não passar aqui o inverno, pois não sei o que farei.
Em ambos, sinais de caminhos outrora pisados, como se alguém tivesse aqui habitado durante bastante tempo. Tenho-me dedicado a percorrê-los, como se procurasse dar-lhes vida, compreender quem por aqui andou ou passou, pelos pequenos sinais e marcas, mas isso é impossível, por um lado, porque as marcas são insuficientes, por outro porque quem cá esteve ou por cá passou, já não está cá. Como tal, a única hipótese é dar-lhes nova vida, a minha vida, a minha cor, o meu sentido, tornando-os meus. Outra hipótese é percorrer outros inteiramente novos, o que neste caso corresponderia a criar novos trilhos. Tenho ocupado algumas horas dos meus dias a pensar qual será a melhor escolha e parece-me que vou misturar um pouco das duas, pois a partir de uma certa altura nas nossas vidas, já nada é absolutamente novo, no sentido que temos um passado, uma história já constituída e acredito que isso se alastra aos caminhos.
Agora que descrevi a ilha onde me encontro, e enquanto olho o horizonte, penso no quão frágeis nós somos. Este lugar, para mim imutável, sobrevivente ao tempo e que agora me serve de abrigo, mostra-me o quão na areia se inscreve a nossa existência e o quão mutável é a mesma. Eu mudo a cada hora, a cada dia, a cada mês, no máximo deixo vestígios, ao passo que estas pedras, estas árvores, estes penhascos, aos meus olhos, pouco preparados para velocidades universais, nunca mudarão. Se assim é, poderei chamá-las de minhas, teremos nós alguma coisa ou são as coisas, os tempos, os espaços que nos têm a nós?
Outras pessoas aqui estiveram, estiveram e partiram, por vontade própria, ou obrigadas, não sei, mas estiveram e partiram, de uma forma ou de outra, deixando apenas vestígios e no meio desta beleza enorme e assombrosa, essa é a nossa única hipótese, ficar ou partir, partir de uma forma ou de outra e nada mais. O espaço por nós ocupado é sempre efémero e curto e como tal, deve ser cuidadosamente examinado e escrutinado para que não se torne um espaço de escrita na areia, ainda mais que aquilo que por condição já é. Não temos nada senão a nós próprios. Essa é a melhor posse, esse é o melhor presente.
Encontro-me deste modo encerrado num espaço de reflexão, de pensamento, que é ao mesmo tempo um espaço de sobrevivência. Mas terá o ser humano outro espaço de constituição, que não o da reflexão e do pensamento? Não será essa uma tarefa para a vida? Somos como um quadro perpétuamente inacabado; mudam-se os componentes da tela, mas a essência fica lá, sempre em composição, um traço imperfeito que nem sempre pode ser emendado, uma paisagem inteira que não resiste à erosão do tempo.
Como é belo este espaço que me rodeia, tão hostil quanto acolhedor, profundamente contraditório, profundamente constituinte. No mesmo encerrado, medito sobre tudo e sobre todos, sabendo de antemão que por aí tudo mudou, é inevitável, faz parte da vida. Tenho de baptizar esta ilha, vou pensar num nome para lhe dar, pois sinto-me já intimamente ligado a ela e não quero resistir à tentação humana da apropriação que tantas vezes nos cega e nos torna desleixados. Loucos que nós somos, nunca temos nada e continuamos a dar nomes às coisas e a tê-las como nossas, quando nada mais são que fios de água a correr por entre os dedos.[...]
Por hoje termino, não cansado, mas termino. Vou agora levantar-me e percorrer mais uma vez a ilha. Sinto-me como que empurrado por uma mão invisível que me leva a querer andar e a procurar, o quê não sei, mas acredito que o bem e com ele a salvação, a salvação deste espaço que ainda que não me seja hostil, me limita.

[...]

ML»



sexta-feira, setembro 11, 2009

Curtas V - Even you Brutus


Assassinato de César, Anónimo

Há 9 anos atrás, num qualquer sítio de lazer, escutei este diálogo, entre "J" e "V" (estou farto do A e do B) que me deixou impressionado:

«V: - Olha, vou apresentar-te os meus projectos: pretendo viajar pelo mundo, fazer n workshops, provavelmente um curso no estrangeiro e aprender uma série de técnicas.
Depois de escutar tudo atentamente, sendo que por economia não identifiquei tudo o que escutei, e também, diga-se em abono da verdade, que metade não ouvi, "J", responde, em jeito de reparo.
J: - Olha, muito bem, fico muito contente, mas posso fazer-te uma pergunta?
V: - Sim, podes, todas.
J: - Segundo o que te ouvi dizer, acho que sei qual é a minha posição da tua vida.
V: - Que queres dizer com isso?
Pergunta "V", não conseguindo disfarçar o espanto face a tão estranha observação.
"J" com um sorriso, continua.
J: - Concluo, e não querendo de forma alguma limitar as tuas vontades, antes pelo contrário, tens todo o meu apoio, que eu para ti sou como o trabalho para o brasileiro.
V: - Que dizes?
empalidecendo.
E com um sorriso cândido, de quem respeita profundamente, "J" termina o seu raciocínio:
J: - Sim, estou 100 vezes atrás do último, é que nem o meu nome referiste.
"V", com um sorriso de assentimento, recheado de verdade, honestidade e coerência, responde:
V: - Sim, é verdade...
"J", levanta-se do sofá, acaricia-lhe a face, beija-a profundamente na testa e solta, enquanto que da cara de "V" já corre uma lágrima em fio:
J: - Não te vou deixar. No amor e na vida o mais fácil é desistir e eu não o vou fazer, até porque se o fizer, vou ficar contigo na mesma, só que ao longe.

Parece estranho, mas lembrei-me desta história a partir da sociedade contemporânea e da compreensão da relação ao trabalho. Assim, um primeiro apontamento prende-se com a noção de insistência e desistência. Segundo a minha perspectiva, só a segunda é voluntária, por incrível que pareça, pois que a primeira acontece mesmo quando não queremos, pois estamos longe de ser uma máquina.
Um segundo apontamento prende-se com esta forma de estar na vida que corresponde a uma completa e total desresponsabilização, na celebração do Eu na invisibilidade do outro. Tudo é usado e trocado, como quem salta de ramo em ramo, à velocidade da luz e mesmo a palavra, reflexo prioritário da nossa capacidade intelectual, impulsionador do desenvolvimento individual e geral é usada à toa. Dizendo o que se deseja, não fazendo o que se diz. Uma eterna vontade adiada, reflectida nas atitudes e nos processos. E face a isto digo: - Palavras, palavras leva-as o vento e ás vezes com a velocidade da borrasca; Viva o descartável, rapidamente reciclável e renovável.
Se a sociedade laboral contemporânea está na era da flexibilidade, porque não também o resto? Não é a sociedade Societal? Não será a lógica geral fruto das cambiantes particulares e vice-versa, obedecendo a um princípio incontornável de reflexividade? Mas e quando contarmos a nossa história, que imagem passaremos? A imagem de patetas saltitões, fábulas e fantasias operacionalizadas, que entre sms´s, emails e redes sociais virtuais, jogam ás cartas com valores e princípios expostos ao vento, já sem o escudo da boa-fé e sem qualquer pudor. Quem hoje é A, amanhã é B e tudo entre sorrisos e abraços regados com: "- Olá.... mas....? Aí sim, mas então!....?? Tudo bem, fizeste bem". Faz lembrar um jogo de futebol, muda-se a táctica, levanta-se a placa, faz-se a substituição e é a loucura.
Mas tal como no jogo de futebol, onde ás vezes a substituição é mal feita, ou os adeptos não gostam por este ou aquele motivo, invocando assim a ausência de linearidade e de lógica, pois há sempre o domínio do acaso fruto da imprevisibilidade , na vida nem tudo é mau, e existem as excepções, que nos dão lições de vida, as excepções que nos prostram, de forma positiva entenda-se, face à nossa condição e nos lembram o quão humanos (ainda) podemos ser, porque pura e simplesmente custa-lhes desistir de si. São os bons treinadores.

domingo, setembro 06, 2009

Cartas de um Naufrago - 3ª entrada

Segue a terceira entrada do diário:


«[......................] Algures, ao final da tarde, julgo eu

Minha querida,

"- Minha querida!??" Se bem me lembro, e tempo é o que me sobra para as minhas lembranças, questionei na minha última carta esta forma de me referir a ti, mas agora parece-me absurdo o tempo perdido nessa consideração, ou até mesmo devotar-lhe mais uma segundo sequer, pois num certo sentido, não tens porque deixar de sê-lo, pois, ironias à parte, é uma expressão usada quer por quem gosta de nós (ou de quem nós gostamos), quer por quem nos quer bem (ou a quem nós queremos bem). Acreditando eu que cada vez menos cabes na primeira categoria, creio contudo que nunca abandonarás a segunda. Bom e lá estou eu a cair na armadilha da crença, na armadilha desta fé inabalável na imagem ou ideia que tenho ou retenho de outrem. Contudo, não sei viver nem ser de outra forma, lamento e peço ao mundo que me desculpe, pois creio, lá está a crença outra vez, que não está e nunca estará bem sistematizado este meu pessimismo antropológico. [...]
Não te posso precisar quando cheguei à ilha, pois cheguei ao final do dia, de um dos muitos incontabilizados dias, exausto, completamente exausto. Assim que coloquei o pé em terra firme, assim que enterrei os dedos na areia quente e húmida, deixei-me cair e ficar, como que dormente, embalado num torpor típico de quem se abandona à sua sorte, ao "deus dará", única e exclusivamente preocupado em respirar, cada vez mais ciente do estado em que me encontrava, do estado em que me encontro. Agora que me começo a erguer, ainda que vergado sob o peso da minha circunstância, constato que nada mais fiz do que levantar-me quando tinha sede, ou quando tinha fome, pois bem junto à orla marítima existem umas árvores de fruto, que me foram alimentando.[...]
Estou assim, sentado de pernas cruzadas, a escrever-te estas linhas e medito sob a noção de destino. Porque estarei eu aqui encerrado? Que provação me está reservada? Melhor, estará o que quer que seja reservado a quem quer que seja? Existirá esse caminho pré-definido por um ser superior, que julga, condenando ou premiando? Existirá um "percursor sombrio" - nos dizeres do ateu francês, pai da Logique du Sens - que se constitui como um novelo de lã, paralelamente à linha da nossa vida, revelando-se a cada momento de queda no mundo, quer ela ocorra por infortúnio ou por felicidade? Não sei, não consigo responder a estas questões. A minhas conversas com Deus são sempre monólogos, os sinais são dispares. A própria noção de sinal depende das considerações acima feitas, pois há sinal quando há predefinição de um trajecto, caso contrário é um mero acontecer! Meu Deus, serei eu, ser pensante, pai da moral, da ética, da religião, da política, da sociedade, um mero acontecer, um puro e só estar aqui? Por outro lado, tendo tudo o supramencionado, serei eu uma marioneta, e se sim, de que me vale todo o meu espólio, todas as minhas capacidades? Em suma, na lógica deste status quo, de que vale a experiência e o saber?
Sempre que me enredo nestes caminhos, o meu raciocínio é sempre o mesmo. Somos o fabricante da nossa existência, somos maquinista e timoneiro, impulso e guia. Não temos controlo total é um facto, pois estamos inseridos em território alheio, não escolhido e hostil, mas temos posse da nossa razão e da nossa vontade. Mas, e Deus, onde fica Deus e o destino? Onde fica o ser a quem apelo em horas de agonia e desespero? Deus é crença, é fé, Deus é a minha mão, o meu querer, a minha razão, a minha consciência, e essa sim, é a grande julgadora do que faço e do que sofro, e só por insuficiência de condição humana, jogamos nas costas do destino o preço do erro ou a glória da ventura. Deus diz-me: "- Dou-te a razão e a vontade, dou-te o poder de agir. Como não deves fazer, recomendo, mas deixo a ti o poder de exercer a tua vontade, para que construas a tua vida, da forma que considerares mais correcta e mais justa, nunca perdendo de vista o outro."
Só eu sei o que faço, só eu me condeno, só eu me recompenso, só eu repouso tranquilo com as estrelas como tecto, só eu repouso aflito, angustiado, enredado no meu próprio fazer, a que chamo de acontecer. Se é facto que não sou eu a minha moral, também o é que sou eu a minha ética, mas que a mesma não deve nunca esquecer o diálogo moral. Verdade, honestidade, coerência, este é o meu Deus e à sombra destes devo eu edificar a minha casa.
[...]
Aceito assim esta provação, e se parte de mim não consegue sair da ideia que a mesma é infligida por castigo divino, a outra parte do meu ser aceita-a como consequência das minhas acções, tendo sido as mesmas exercício da minha vontade e do meu querer. Pena que não me oiças, tenho tanta pena, mas o tempo corre, não para de correr. Resta-me agora decifrar o porquê desse meu querer, e tempo, ah tempo, esse é o que não falta.
Estou cansado, devastadoramente cansado. Vou deixar-me ficar aqui mais um bocado, a ouvir o mar bater na areia, cadenciado como está, enquanto aprecio a lua, embora não veja ainda as estrelas. Sinto ainda o peso, o amargo peso das quatro paredes. Contudo, sinto que vou consegui-lo dentro em breve, aliás acredito mesmo que vou consegui-lo, pois que alternativa tenho eu?

Teu,

ML»



quarta-feira, setembro 02, 2009

Cartas de um Naufrago - 2ª entrada

Boa noite,

Segue a segunda entrada do diário denominado, Cartas de um Naufrago


«Algures, 2ª cart.........

Minha querida,

Será que ainda te poderei considerar como tal, é a questão que se levanta neste dia que amanheceu muito cinzento, no seguimento de como terminou o anterior. Sim, é um facto, nada mais está a ser isto que uma dura e lenta sucessão de dias, muito iguais, muito sem nada, ironicamente preenchidos de nada. Como é que o nada preenche qualquer coisa? Não ligues, divago, é do Sol, é o fruto da lassidão dos dias estendido neste bote. Quando estamos desocupados, pensamos muito e agimos pouco. Contrariamente aos gregos que pensavam para agir, nós agimos para pensar e quando acontece o contrário, é o desespero.
Escrevo-te numa pausa entre rudes e esforçadas remadas, pois tomei a decisão de remar na direcção da ilha, nem que isso me consuma, aqui parado é que não. No ser humano, mesmo a desistência corresponde a uma tomada de posição. Quer seja para parar ou para andar, temos de decidi-lo, que por si só já é acção, e como a nossa bios nunca para, desistir é também uma ilusão, pois corresponde única e exclusivamente a estar parado, sem fazer nada, e isso não. Se tiver de tombar, que tombe a procurar salvar-me, já que tu não o podes fazer.

Se o mar não me ilude, e acredito que não o esteja a fazer, acredito que dentro de algumas horas consiga finalmente pisar terra firme, mas terra firme, outra ironia, haverá notícia de terra firme? Estando nós inquietos, sem convicção, longe do nosso porto de abrigo, haverá terra firme? São para ti estas perguntas, se bem que não me consigas responder, mas são para ti. É contigo que falo quando procuro deixar-me dormir a olhar para as estrelas, é contigo que falo quando procuro perceber esta louca precipitação de eventos, mas não consigo ouvir a resposta. Estás longe, lá tão longe, cada vez mais angustiantemente longe e eu sem nada poder fazer, pois se é um facto que consigo remar até aquela ilha, também é um facto que me está vedado passar da mesma. Todo um muro de azul (ou negro??)está erguido entre nós e tudo o que me resta é isto, pedaços de nada, farrapos, lembranças, duras chagas vivas entranhadas em todo o meu ser abandonado e perdido, aqui despejadas em palavras ocas que por vezes nem de consolo ou libertação servem, antes reflectindo a agrura vivida.

Estou cansado, muito [...]sado[....].
Até breve, embora comece a questi[...] as minhas próprias palavras.

Teu, sempre

ML