domingo, agosto 30, 2009

Hoje descobri

Salvador Dali, O Sacramento na Última Ceia


E hoje descobri que somos mesmo uma poesia da contradição, um cirandar entre o hoje e o amanhã, entre o que tudo é, e que depois já nada é. E hoje descobri que fiz também aquilo que critiquei e critico, que a aflição traz a tentação, que a ânsia de saber nos leva por caminhos não antes pisados. Hoje descobri que sou igual, sim, no sofrimento somos todos iguais, humanos, curiosos, aflitos, impacientes, desesperados. Hoje descobri que ninguém, ou muito poucos, merecem os altos padrões que se lhes reconhecem, a que muitas vezes se auto-propõem, e que valores defendidos, são muitas vezes traídos pelos próprios apologistas dos mesmos. Hoje descobri que o abandono é aparentemente fácil, que as palavras nada valem - mesmo aquelas que nos remetem para o intemporal - que são como traços nos quadros, solúveis, que são usadas como ases no póquer. Hoje descobri que mais fácil é dizer que fazer. Hoje descobri que do dia para a noite se passa do oito para o oitenta e do oitenta para o oito. Hoje descobri que toda a gente mente e omite, mas que nem todos abandonam os seus. Hoje descobri que mesmo os melhores, ou tidos como melhores, desistem e traem-se a si próprios e aos outros. Hoje descobri que quem faz uma, faz duas, embora eu continue teimosamente a defender e a acreditar no oposto. Hoje descobri que o António Barreto tinha razão ao apontar como crítica o facto de estarmos numa época de "Moral geral" e "Éticas privadas", que o que importa, na contemporaneidade, "é estar de bem com a nossa consciência." Hoje descobri que tal como ele, estou de mal com a minha e estarei sempre, pois há um longo caminho a percorrer e o diálogo interior não pode nunca cessar nem dar-se por satisfeito. Hoje descobri e estou triste, triste pois perdi mais um pouco de fé nas pessoas, fé inclusive no facto de serem melhores que eu. Hoje descobri que tenho de ser melhor. Hoje descobri, que tal como o poeta, somos todos uns fingidores; músicas, poemas, "scraps", são tudo preenchimentos de espaços próprios, por logro transmitido aos outros, como se fossem deles. A dor, o regozijo, a alegria, o amor, são sempre nossos, sendo que os demais, são apenas interesses, interesses que se tornam nossos e que se encaixam. Hoje confirmei que mais importante que ser fiel é ser leal.

Hoje descobri e se estou mais lúcido, também não é menos verdade que estou mais pobre, muito mais pobre.

segunda-feira, agosto 24, 2009

Cartas de um Naufrago - 1ª entrada

Boa noite,

Dando seguimento ao último post, e tendo já eu decifrado, julgo eu, algumas das partes mais afectadas do diário, escrito sob a forma de cartas, venho aqui colocar ao vosso dispor a primeira entrada, chamemos-lhe assim, do diário. Sempre que apareçam reticências ou parêntesis rectos, significa que não consegui compreender o que estava escrito e decidi não fazer conjecturas, por forma a ser o mais fiel possível ao achado. Espero que sejam do vosso agrado.

«Algures, 24 de Agosto .........,

Minha querida,

Não sei que horas serão, pois começo a perder o rasto ao tempo, ao tempo cronológico, já que quanto ao físico, começa a estar bem vincado no meu corpo e na minha alma, uma vez que nesta situação de privação, os limites do meu corpo são também os meus, já me valendo de pouco o raciocínio e a razão
.
Agora que passaram cerca de 30 dias, acho eu, desde que nos vimos pela última vez, antes de ter partido para esta viagem absurda, e aproveitando tudo o que tenho à mão passível de ser utilizado, decidi escrever-te prevenindo o facto de poder não ser resgatado a tempo. Sim, concordo, sei que tudo isto poderá nunca ser encontrado, mas também sei que não posso ficar aqui inerte sem fazer nada, para além do que, numa situação de desespero, ou na iminência do mesmo, toda a nossa alma aponta para a pessoa que amamos, tal como se fosse o nosso anjo da guarda. Do mesmo modo, não quero deixar nada por dizer, pois posso não ter outra oportunidade ou meio de fazê-lo. Não estranhes contudo não teres muito que ler a cada carta, ou se as datas forem muito espaçadas, é que o cansaço e o desânimo são muito fortes e tiram-me as forças para meditar e raciocinar e bem sabes tu o quão gosto de fazer ambas.
Como deves saber, o acidente aconteceu bem pouco depois de nos termos despedido naquela noite. Foi uma tempestade tão forte, quão inesperada, de tal ordem, que nada valeram os esforços para manter o barco a navegar. Foi como se o mesmo tivesse sido atingido por tiros de peça de artilharia, tal como as que eram usadas nas ferozes batalhas do Pacífico, durante a Segunda Guerra mundial. No meio do caos, consegui fugir com algumas coisas para dentro de um pequeno salva vidas e aqui ando há já cerca de 30 dias, perdido nesta imensidão azul. Tenho avistado uma ilha ao longe, julgo eu, pois não ponho de parte a hipótese de serem alucinações, da qual me aproximo e afasto conforme o sabor da corrente, pois não me encontro em condições de fazer muito contra essa aleatoriedade. Assim, vou aguardando na esperança de que o vento ou uma maré favorável me conduza a bom porto, até porque a água doce começa a escassear.

Por hoje fico-me por aqui, pois foi um dia intenso, de muitas lembranças e saudades. Mesmo com os lábios ressequidos pelo sol e pelo sal, dava tudo para poder fechar os olhos e sentir o toque suave dos teus lábios nos meus. Sonho, eu sei, mas que mais me resta estando eu perdido nesta imensidão e com pouca certeza do rumo que levo!?
Estou cansado, muito cansado [....]. Até breve, se Deus assim o entender.

PS: Meu amor, para que saibas tu e só tu que sou eu e quem sou eu, assino com as iniciais do nome que escolhemos para a nossa filha, ML.»

Espero em breve publicar a segunda entrada.

quinta-feira, agosto 20, 2009

Cartas de um Naufrago - Introdução


Message in a Bottle, acessível em:
http://rookery2.viary.com/storagev12/1006500/1006532_da14_625x1000.jpg

Boa noite,

Este post dará início, provavelmente a uma história que nada terá de novo, mas que também nada terá de velho, nem hoje, nem nunca, pois trata-se de falar de amor. O peculiar aqui, não é o assunto em questão mas a forma como será tratado, ou neste caso, retratado. Passo a explicar. O autor deste blog, numa das suas muitas incursões pela praia, onde dá grandes passeios a pé pela hora da maré baixa, encontrou uma garrafa carregada com cartas, isso mesmo cartas, não uma ao acaso, mas várias, dando a entender que se trata de um diário, que em face de um destino nada favorável, em desespero de causa foi jogado ao mar, dentro de uma garrafa, como já referi. Parece incrível em pleno Século XXI, mas é verdade.

Não me alongarei muito nesta introdução, e deixo apenas dois apontamentos. Primeiro a explicação do uso da expressão "provavelmente". A mesma foi usada, não como recurso com o intuito de indicar um suspense, mas antes porque os sinais contidos nas cartas têm de ser interpretados correctamente, pois há todo um desgaste sofrido pelo diário. O segundo apontamento tem a ver com o título escolhido pelo autor deste blog, a saber, Cartas de um Naufrago, que parece ao autor fazer todo o sentido e duplamente, isto é, naufrágio do ponto de vista físico e naufrágio do ponto de vista metafísico.

Espero que seja do agrado dos seguidores deste blog esta tarefa que tomei em mãos e se por ventura reconhecerem a história, digam.

Duas curiosidades, a assinatura escolhida pelo autor do diário e o nome com o qual baptizou a ilha onde se viu perdido. Assim escreve no final da primeira carta:

"Meu amor, para que saibas tu e só tu que sou eu e quem sou eu, assino com as iniciais do nome que escolhemos para a nossa filha, ML"

Já pelo meio da 5ª, 6ª carta escreve:

"Vejo-me assim perdido e encontrado numa ilha chamada Eu, sim é o melhor nome que lhe posso dar.

Teu, sempre

ML"


domingo, agosto 09, 2009

O Trabalho como elemento estruturante do Ser; Bios e Ethos


«Para a maioria dos indivíduos o trabalho é, de todas as actividades, a que ocupa a maior parte das suas vidas. Associamos, frequentemente, a noção de trabalho a escravidão – um conjunto de tarefas que pretendemos minimizar e, se possível, a que queremos escapar. O trabalho é mais do que escravidão, ou as pessoas não se sentiriam tão perdidas e desorientadas quando ficam desempregadas. […] Nas sociedades modernas ter um emprego é importante para se preservar o respeito por si próprio. Mesmo quando as condições de trabalho são relativamente desagradáveis e as tarefas a realizar monótonas, o trabalho tende a ser um elemento estruturante na constituição psicológica das pessoas e no ciclo das suas actividades.»

GIDDENS, Anthony, Sociologia, trad., Alexandra Figueiredo, Ana Patrícia Baltazar, Catarina Silva, Patrícia Matos e Vasco Gil, FCG, Lisboa, 2007, 5ª Edição, pag. 377


"Quando reflectimos sobre a disposição que a maioria de nós, seres humanos, os ditos normais ou funcionais, aparenta ter perante a existência, que se manifesta na constituição da sua vida, não podemos deixar de nos interrogar acerca daquilo que nos move, pois parece ser um facto que caminhamos para lado nenhum. Que pretendemos nós dizer com isto? A nossa vida, não tendo nada garantido, tem duas coisas muito bem definidas, nascemos, estamos no mundo, e outra, que quer nós façamos o que quer que seja, acontecerá um dia, ou seja, vamos morrer. E uma coisa é certa: podemos nem todos viver, mas todos morremos.

O que deriva desta afirmação é a descoberta da vida não como gratuita, mas como possibilidade de constituição. Mas, paralelamente, não parece estranha a constituição disto a que chamamos vida? Não seria melhor fazer o que nos apetecesse e esperar pela hora? A nossa racionalidade diz-nos que não e ao longo da nossa evolução desenvolvemos uma relação estreita com isso a que chamamos de actividade, seja ela intelectual ou física, que conduz ou leva à constituição da nossa vida, chegando mesmo a identificar-se com a mesma. A vida é prática. Neste sentido, somos reconhecidos socialmente, do ponto de vista positivo ou negativo, quando fazemos qualquer coisa, somos incluídos ou marginalizados socialmente em virtude do curso que damos às nossas actividades, em virtude do rumo que damos à nossa vida.

Foi neste pressuposto que as sociedades se constituíram desde os primórdios da humanidade. Este impulso para fazer coisas é algo que nos é intrínseco, e as sociedades contemporâneas, especialmente na sequência da segunda guerra mundial onde os estados assumiram um papel primordial na reconstrução e reestruturação das sociedades, com maior ou menor intervenção, seguindo políticas mais ou menos liberais, mais ou menos proteccionistas, parecem ter definido para o homem comum o caminho da constituição da sua vida, como se pela mão o guiasse e protegesse. Neste sentido, podemos dizer que existem uma série de passos a dar para que a sociedade nos aceite e nos reconheça como seu membro, e ao mesmo tempo nos permite fazer uso daquilo que nos pode dar como cidadãos de direito, por hipótese, protecção social, judicial, fiscal, etc. Os passos foram mudando ao longo dos tempos, conforme também as sociedades foram evoluindo. Aquele que nos cumpre analisar aqui é o trabalho e a centralidade que o mesmo ocupa na vida do Homem, da pessoa e do cidadão.

O homem tem uma relação profunda com o trabalho, com o produzir coisas. Da simples e básica subsistência, à sociedade de topo contemporânea do mundo desenvolvido, aquilo que fazemos e como o fazemos ocupa um espaço central na nossa vida. E isto porquê? Porque nos proporciona estabilidade no presente e nos dá esperança para o futuro.

Do ponto de vista garantia do futuro individual, o rendimento que nos proporciona, a inclusão social que promove, permite ao homem gozar da protecção social do estado providência, mas também construir a sua própria providência nos estados mais liberais, recorrendo a instrumentos modernos de poupança. Mas não só. Do ponto de vista colectivo, é o trabalho que permite que possamos pensar em ter uma casa, um carro, em constituir família, ter filhos, em preparar os primeiros passos desses mesmos filhos.

É no trabalho que gastamos grande parte da nossa vida, mas também é o trabalho que nos permite alguma tranquilidade quando pensamos naqueles que temos mais próximos. Do mesmo modo, é pelo trabalho que nos sentimos integrados e como pertencentes ao meio que nos rodeia e na ausência do mesmo sentimos o oposto. Quem já passou por isso, sabe o quão dramático é passar pela situação de desempregado, quer tendo direito aos subsídios sociais ou não. Ansiar por uma entrevista, esperar que um qualquer recrutador “vá com a nossa cara e aposte em nós” é uma experiência desgastante e que nos faz olhar para o mundo desesperados, pois nada podemos fazer sem trabalho e sem rendimento; todas as portas se fecham [...] "


NEVES, EDUARDO, Da Sociedade Industrial à Sociedade Pós-Industrial: Individualização, Risco e Descontinuidades Biográficas, introdução do ensaio apresentado à cadeira de Sociologia do Trabalho, semestre de inverno, , ISCTE, Mestrado em Ciências do Trabalho, 2007/2008