Wanderer Above the Sea of Fog,
Casper, David Friedrich
«É [...] final da tarde. O mar está calmo, corre uma pequena brisa que espero que seja suficiente para enfunar a vela e me levar daqui. Os trapos que me cobrem o corpo anunciam que é hora de partir, pois já me sinto de mim para mim uma memória. Vejo-me como um espaço-tempo já percorrido, sinto-me como se me estivesse a ver num quadro, a ler num livro, impressão morta, terreno pisado e repisado. É hora de partir, arriscar e partir, é hora de recuperar o ser do humano, é hora de navegar e colocar o cuidado do lado do risco.
Desde a nossa alvorada que não somos mais que horizontes de memória, memória em constituição. Da memória dos sentires do ventre, aos primeiros passos, quedas e conquistas, uma constante de referências passadas entre-cortadas por imagens do presente já ido perspetivando um presente que poderá vir. Somos sempre imagem e reflexo, imagem do que foi, reflexo do e no que se que mostra e do e no que se mostrará. Partimos de um nada, para nos constituirmos num nada. Dimensionalmente finitos, constitutivamente possíveis.
E aqui, que sou eu? Menos que memória, traços, esquissos, sem ligação, impossíveis de se fixar neste aleatório, vácuo de ser, sem correspondência, sem raízes ou ramos. Desligado de tudo, não me ligo a nada. Não há opção só condicionamento, um indeterminismo determinado pela circunstância, não de se ser assim ou de outra forma, mas de se estar assim. Um ir sendo para lado nenhum. Estou como um prisioneiro, embora aparentemente livre. Se é um facto que não podemos nunca dizer que somos verdadeiramente livres, porque não o somos, também não é menos verdade que sem laços, sem ligações, desprendidos, aparentado uma suma e verdadeira liberdade - a do ermita - continuamos igualmente presos. É como me sinto, nesta ilha chamada Eu, onde podendo tudo, não posso nada para além do básico. Não há ligação, reflexo, ou registo, elo, nada. Podendo ser tudo, não sou nada. Sobrevivo.
A vida é a marca do exercício da liberdade e a liberdade a marca do exercício da vida, cama que se faz no constituir do Si. Aqui, nada se constitui, o possível tudo representa o nada, despojado que está do ser do Humano. A liberdade tornou-se uma prisão.
A vida é a marca do exercício da liberdade e a liberdade a marca do exercício da vida, cama que se faz no constituir do Si. Aqui, nada se constitui, o possível tudo representa o nada, despojado que está do ser do Humano. A liberdade tornou-se uma prisão.
[...]
Está na hora. Esta ausência de balizas está a consumir-me. Não tenho plano para lá do suspiro pós ação.
[...]
Está pronto, está tudo pronto. Um último olhar da falésia sobre a minha obra, ela também um reinventar de mim. Uma amálgama de materiais, veiculo da libertação, seja ela para a morte ou para o regresso à vida, a "mão tijolo" que fez obra. Está na hora de partir, tendo eu forças ou não para tal. Tendo que não tendo, eu sou a força, aliás tenho de ser o que tiver de ser, pois o meu ser constituir-se-á na minha resistência e capacidade para a minha obra, para o meu exercício. Assim, a um tempo explorador e cuidador, aceito
a condição de naufrago, recusando a condição de naufragado. Órfão de
ti, órfão de nós -reconhecendo a condição de que tudo morre, mas que
nada nos deixa - como progenitor da minha própria vida, parto como
navegador solitário, a condição por excelência do ser humano, em busca
do porto de abrigo, em busca de ti.
[...]
Até já, sempre teu.
ML»
ML»
Sem comentários:
Enviar um comentário