The Traveler,
Constable-John
Olá, bom dia.O tempo está agradável, a temperatura não muito baixa e apetecia-me falar sobre tantas coisas, que inevitavelmente acabariam em discussão, claro, pois consegues irritar-me ao ter razão quase sempre e em quase tudo. Mas afinal, ser pai não é isso mesmo?
Sabes, sinto-me cada vez mais parecido contigo, até na emotividade contida,
na raiva enclausurada de querer disparatar com tudo e com todos, sabendo que não
o devo fazer, sabendo que não o posso fazer. Envergonhado, acanhado, sempre no
meu canto, o fazer o que tenho a fazer, mas preferindo manter-me na sombra, anónimo. Irritantemente parecido, mas ainda bem.
O que digo eu, claro, O Benfica, o nosso Benfica, quão irritado deves andar
lá por essas terras para onde te decidiram enviar, como se já não tivesse
chegado África. Que me tens a dizer, o que, não te oiço, tens de voltar homem,
estou farto de falar com as paredes. Ah, o carro, pois, sem comentários. Sabes,
uma marca americana fez-me lembrar de ti, terá sido a marca, não sei, olha, construíram
um carro completamente eléctrico. Que me tens a dizer, o tradicional “qualquer
dia os carros não precisam nem de mecânicos, nem de bate-chapas, é comprar e vender”, qualquer coisa
assim. Ficaram coisas por dizer, claro, mas isso ficaria sempre, nem que por cá
andássemos até ao fim dos tempos. Aquilo que
verdadeiramente me aborrece é que há tanto para dizer e
isso sim, não posso fazê-lo. Irritante isto, volta rápido ou então fazes-me ir ter contigo, mas isso sei que não queres, não ainda.
Mas o que mais me irrita é o ter-me apercebido, ou
confirmado, que com todos os teus múltiplos defeitos – com todos os meus profundíssimos
defeitos – eras e és o meu grande amigo e compadre, um verdadeiro e único pai. Se há
algo a pedir desculpa, foi o não te ter aproveitado mais, mas se assim já é dolorosamente insuportável, nem imagino como seria se o
tivesse feito.
Deixaste-me grande chato, deixaste-me e não sei o que fazer, sinto-me
completamente perdido e só me apetece fugir para a tua sombra, como tantas vezes
fiz. Não digo isto porque a vida me corre bem ou mal, apenas porque o sinto,
sinto-o profundamente, sinto uma profunda vontade de me sentar ao teu lado, de
conversar contigo a caminho do café ou durante o almoço, ou olha, que me
rebentes a cabeça por o carro ter as rodas sujas…… de lama. És assim, de
extremos. E as surpresas aos netos, que falta cá fazem. Agora por isso, como
bem deves saber, foste avô, finalmente tivemos uma menina. Seria o teu regalo
meu grande chato.
Porquê não só mais um ano, dois, três, espera 10, pelo menos 10. Chato,
porquê tão cedo e a ultima coisa que te disse, já nem ouviste, mas oiço-me a
mim todos os dias a dizê-lo. As experiências da vida têm
contornos de absurdo, de dor profunda.
Meu grande velho, a quem nada sabe muito bem, tudo e feito porque sim,
mas cuja parceria me faz tanta falta. Lembras-te, chamas-me o “Zé das Calmas”,
muita dessa calma foi contigo, é em grande parte a tua presença e existência a fonte
dessa calma. Afinal, fora o moeres-me a cabeça no processo, quando e que me
deixas ficar mal? Só quando não estas.
Desculpa, mas não consigo dizer adeus, só até já, e isto e tão mais frustrante quando não
consigo exprimir-me ou sequer chorar sobre isso. Partiste e deixaste um vazio impossível
de preencher que chega a deixar-me sem vontade de fazer o que quer que seja. Sinto-me
abandonado, sem timbre, olha, como canta o Rui, sinto falta do teu jeito
fechado, o jeito de quem mói um sentimento, tal como eu. O silêncio do
miradouro, aquelas ruas, a rua onde tive o meu primeiro acidente ao volante,
lembras-te? O ar primaveril da Todi, o final de tarde na lota, a travessia do Sado, sempre bela, revelando sempre algo de novo, o hino das Papoilas que não se
consegue cantar desde o dia que a notícia se soube; fica preso na garganta, não sai, o
vibrar das cordas cede o lugar ao correr das pequenas lágrimas. Tu em tudo, tu
em mim meu velho. Chato.
Sabes, andei por Paris novamente, e fartei-me de
conversar contigo, especialmente quando visitei o stand de vendas da Renault, nos Elísios.
Olá bom dia, boa
tarde, boa noite, qualquer coisa menos Adeus. O meu reino por ti, como o William ensinou. Já não chegou África homem? Quando voltas?
PS: De vez em quando deixo crescer a barba, como tu. Olho-me ao espelho, vejo-te e ajuda um bocadinho.
PS: De vez em quando deixo crescer a barba, como tu. Olho-me ao espelho, vejo-te e ajuda um bocadinho.
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