sexta-feira, fevereiro 01, 2013

Até ao teu regresso


The Traveler,  
Constable-John
 
Querido Pai,

Olá, bom dia.O tempo está agradável, a temperatura não muito baixa e apetecia-me falar sobre tantas coisas, que inevitavelmente acabariam em discussão, claro, pois consegues irritar-me ao ter razão quase sempre e em quase tudo. Mas afinal, ser pai não é isso mesmo? 

Sabes, sinto-me cada vez mais parecido contigo, até na emotividade contida, na raiva enclausurada de querer disparatar com tudo e com todos, sabendo que não o devo fazer, sabendo que não o posso fazer. Envergonhado, acanhado, sempre no meu canto, o fazer o que tenho a fazer, mas preferindo manter-me na sombra, anónimo. Irritantemente parecido, mas ainda bem.


O que digo eu, claro, O Benfica, o nosso Benfica, quão irritado deves andar lá por essas terras para onde te decidiram enviar, como se já não tivesse chegado África. Que me tens a dizer, o que, não te oiço, tens de voltar homem, estou farto de falar com as paredes. Ah, o carro, pois, sem comentários. Sabes, uma marca americana fez-me lembrar de ti, terá sido a marca, não sei, olha, construíram um carro completamente eléctrico. Que me tens a dizer, o tradicional “qualquer dia os carros não precisam nem de mecânicos, nem de bate-chapas, é comprar e vender”, qualquer coisa assim. Ficaram coisas por dizer, claro, mas isso ficaria sempre, nem que por cá andássemos até ao fim dos tempos. Aquilo que verdadeiramente me aborrece é que há tanto para dizer e isso sim, não posso fazê-lo. Irritante isto, volta rápido ou então fazes-me ir ter contigo, mas isso sei que não queres, não ainda.


Mas o que mais me irrita é o ter-me apercebido, ou confirmado, que com todos os teus múltiplos defeitos – com todos os meus profundíssimos defeitos – eras e és o meu grande amigo e compadre, um verdadeiro e único pai. Se há algo a pedir desculpa, foi o não te ter aproveitado mais, mas se assim já é dolorosamente insuportável, nem imagino como seria se o tivesse feito. 


Deixaste-me grande chato, deixaste-me e não sei o que fazer, sinto-me completamente perdido e só me apetece fugir para a tua sombra, como tantas vezes fiz. Não digo isto porque a vida me corre bem ou mal, apenas porque o sinto, sinto-o profundamente, sinto uma profunda vontade de me sentar ao teu lado, de conversar contigo a caminho do café ou durante o almoço, ou olha, que me rebentes a cabeça por o carro ter as rodas sujas…… de lama. És assim, de extremos. E as surpresas aos netos, que falta cá fazem. Agora por isso, como bem deves saber, foste avô, finalmente tivemos uma menina. Seria o teu regalo meu grande chato.


Porquê não só mais um ano, dois, três, espera 10, pelo menos 10. Chato, porquê tão cedo e a ultima coisa que te disse, já nem ouviste, mas oiço-me a mim todos os dias a dizê-lo. As experiências da vida têm contornos de absurdo, de dor profunda. 


Meu grande velho, a quem nada sabe muito bem, tudo e feito porque sim, mas cuja parceria me faz tanta falta. Lembras-te, chamas-me o “Zé das Calmas”, muita dessa calma foi contigo, é em grande parte a tua presença e existência a fonte dessa calma. Afinal, fora o moeres-me a cabeça no processo, quando e que me deixas ficar mal? Só quando não estas.


Desculpa, mas não consigo dizer adeus, só até já, e isto e tão mais frustrante quando não consigo exprimir-me ou sequer chorar sobre isso. Partiste e deixaste um vazio impossível de preencher que chega a deixar-me sem vontade de fazer o que quer que seja. Sinto-me abandonado, sem timbre, olha, como canta o Rui, sinto falta do teu jeito fechado, o jeito de quem mói um sentimento, tal como eu. O silêncio do miradouro, aquelas ruas, a rua onde tive o meu primeiro acidente ao volante, lembras-te? O ar primaveril da Todi, o final de tarde na lota, a travessia do Sado, sempre bela, revelando sempre algo de novo, o hino das Papoilas que não se consegue cantar desde o dia que a notícia se soube; fica preso na garganta, não sai, o vibrar das cordas cede o lugar ao correr das pequenas lágrimas. Tu em tudo, tu em mim meu velho. Chato. 

Sabes, andei por Paris novamente, e fartei-me de conversar contigo, especialmente quando visitei o stand de vendas da Renault, nos Elísios. 


Olá bom dia, boa tarde, boa noite, qualquer coisa menos Adeus. O meu reino por ti, como o William ensinou. Já não chegou África homem? Quando voltas?

PS: De vez em quando deixo crescer a barba, como tu. Olho-me ao espelho, vejo-te e ajuda um bocadinho.

Pessoa entende-me, bem e sempre



The violin Player, Louis-Alexandre Dubourg



Pobre Velha Música!  

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora. 


Pessoa, Fernando, in "Cancioneiro"