Na primeira entrada, ou carta, foi referido que não seriam feitas considerações sobre ou alterações na estrutura do texto. Contudo, face à peculiaridade desta carta, foi necessário fazer uma chamada de atenção para a mudança de registo, pontual, de relato para diálogo. A degradação da carta impede um esclarecimento mais profundo.
«Final de tarde, um dia qualquer desta metamorfose temporal que sou eu e o mundo [....]. O tempo está agradável, dir-se-ia um final de tarde de verão, mas na ausência de convenção, é apenas um final de tarde agradável. Cá estou eu, desta vez não no areal, perscrutando o horizonte, mas antes no topo de um penhasco, a vislumbrar uma das enseadas desta ilha, enseada essa que se assemelha aqueles sítios onde os afluentes dos rios terminam, ou fazem uma curva, deixando uma espécie de praia. A vista é fabulosa, inebriante mesmo. O azul do mar, o areal, povoado de pedras pequenas e grandes, com o verde da mata por trás [...]cujas árvores à distância, aquela distância que ao homem permite a ilusão por defeito de condição, parecem dispostas em fila de forma extremamente organizada [...] é-me profundamente familiar, tornando este sítio ainda mais belo! Como já disse e penso, como é possível um sítio tão distante me parecer tão próximo?
Vou agora relatar um episódio que me aconteceu há alguns dias atrás. Alguns dias, penso eu que foram alguns dias, não sei, perco o fio à meada com muita facilidade, pois não tenho como me regular, senão pela fome ou pelo cansaço. Puro instinto na condução da existência, ou sobrevivência, e tanto tempo para a reflexão, para o uso da razão. Interrogo-me agora, ainda mais, como seria a vida de um animal, um leão, um cão, por hipótese, se tivesse razão?
Relativamente ao episódio, como havia relatado, nos meus passeios pela ilha encontrei uma escultura de madeira, pelo menos identifico-a como tal. Estava eu sentado no areal, a mirar o horizonte, quando decidi ir ter com a escultura de madeira. Uma vez frente à mesma, acabei por de lhe dar um nome, "16, serás o 16, faço-o em memória do meu avô, que atribuía números a tudo. Nunca soube o porquê, mas para além do seu feitio peculiar, atribuo o facto ao não saber ler nem escrever"!
Quando me preparava para voltar, aquela coisa aparentemente inane disse-me "Olá". Esbocei um sorriso, atribui o facto ao desespero da solidão e segui caminho. De repente ouvi chamar, e há quanto tempo não ouvia ninguém chamar-me. Parei e voltei atrás. De repente perguntou o meu nome ao que respondi "não sei, já não sei, pois que o que me tornei não sou eu, e estou na viagem de regresso, como tal não sei o que te responder" e dei por mim a falar com/para uma árvore, com o 16, uma árvore que era escultura de madeira, escultura que eu nem sabia muito bem se era, árvore que já não era. [...]! (Aqui o relato passa à diálogo, como se de uma transcrição da conversa se tratasse. o hiato é impossível de decifrar, dai esta intromissão)
"[...] Mas tu falas, perguntei eu, muito espantado?
16: Sim, falo.
Estou louco, o sol, o sal do mar, a erosão da solidão deixaram-me louco. Impossível, és um pedaço de madeira.
16: Chama-me o que quiseres, mas eu falo, e penso e vejo e sinto. Aproveita, já não estás só.
Sim, mas não andas pelo menos.
16: Não preciso, estou em todo o lado. Para todo e qualquer lado que vás, estarei lá, sempre que queiras, no espaço desta tua ilha.
Nem sei que te diga.
16: Mas diz-me, fala comigo, como vieste aqui parar? Há quanto tempo aqui estás?
Não sei pormenores, apenas que foi um naufrágio, quanto ao tempo, não sei dizer.
16: Há muito tempo que andas naufragado...
Que dizes? Que sabes tu?
16: Nada, apenas te julguei pelo aspecto, pelo lamento expresso pelo tom de voz, que estranhamente não se coaduna com o ânimo demonstrado. Dir-se-ia que estás suspenso.
Estranho, muito estranho, deixas-me estupefacto, o pouco que vês, o muito que sentes e sabes.
16: Sou assim, olho-te nos olhos e vejo uma luta enorme, um questionamento constante sobre o estar aqui, não aqui nesta ilha, mas o estar aqui no mundo. Acertei?
Sim, acertaste. Descurei-me de mim, tão pouco liguei ao muito que agora quero e vejo como próprio. Tanto liguei ao que agora repudio com todas as forças e que quase me destruiu. Permiti que a bruma do fácil envolvesse o que era tão claro, tão natural, como se fugisse de mim, tornando o que me era próximo distante.
16: O reconhecimento de si é um primeiro passo para a constituição e penso que estás no bom caminho. Vamos fazer um acordo.
Diz-me
16: Serei o teu companheiro, juntos pela força do diálogo, questionaremos o modo de estar, na tentativa de constituição de um modo de ser. Mas fiquemos por aqui hoje, estás cansado, sinto-o. Vai, repousa, e regressa a mim quando entenderes, mas não esqueças que estarei sempre contigo, assim o queiras."
(volta a dar-se um retorno ao relato)
Acordei, estava na praia, deitado ao sol, cansado de facto. Terei sonhado, pensei para comigo? Voltarei lá em breve, mas não, não pode ser, uma árvore que fala. Será a minha consciência? Estarei louco. Voltarei lá em breve.
E pronto, foi isto que me aconteceu há alguns dias atrás e ainda não voltei ao 16. Contudo sinto-o ao meu lado, estranho! De facto, decidir para mim ter uma consciência, um amigo, é uma coisa, decidir essa coisa não ser uma coisa, mas antes um ser e tornar-se ela a consciência, é algo completamente diferente. Sinto-me calmo contudo, estranhamente calmo.
Uma coisa é certa, nesta solidão, nesta luta contra a vontade de desistir, ganhei novo ânimo, novo fôlego para me manter na luta, não só pela minha sobrevivência, mas também, e acima de tudo, pela minha existência, pelo busca do meu fundamento. Tenho de lá voltar, afinal já não estou só.
A partir deste momento, tudo para mim é uma enorme questão, tudo para mim sou eu e a minha constituição, o esclarecimento de mim. Estou assim nesta ilha chamada Eu e tornei-me para mim um grande mistério. Tenho de lá voltar.
Fico por aqui hoje, o dia já cai.
Teu,
ML»
Vou agora relatar um episódio que me aconteceu há alguns dias atrás. Alguns dias, penso eu que foram alguns dias, não sei, perco o fio à meada com muita facilidade, pois não tenho como me regular, senão pela fome ou pelo cansaço. Puro instinto na condução da existência, ou sobrevivência, e tanto tempo para a reflexão, para o uso da razão. Interrogo-me agora, ainda mais, como seria a vida de um animal, um leão, um cão, por hipótese, se tivesse razão?
Relativamente ao episódio, como havia relatado, nos meus passeios pela ilha encontrei uma escultura de madeira, pelo menos identifico-a como tal. Estava eu sentado no areal, a mirar o horizonte, quando decidi ir ter com a escultura de madeira. Uma vez frente à mesma, acabei por de lhe dar um nome, "16, serás o 16, faço-o em memória do meu avô, que atribuía números a tudo. Nunca soube o porquê, mas para além do seu feitio peculiar, atribuo o facto ao não saber ler nem escrever"!
Quando me preparava para voltar, aquela coisa aparentemente inane disse-me "Olá". Esbocei um sorriso, atribui o facto ao desespero da solidão e segui caminho. De repente ouvi chamar, e há quanto tempo não ouvia ninguém chamar-me. Parei e voltei atrás. De repente perguntou o meu nome ao que respondi "não sei, já não sei, pois que o que me tornei não sou eu, e estou na viagem de regresso, como tal não sei o que te responder" e dei por mim a falar com/para uma árvore, com o 16, uma árvore que era escultura de madeira, escultura que eu nem sabia muito bem se era, árvore que já não era. [...]! (Aqui o relato passa à diálogo, como se de uma transcrição da conversa se tratasse. o hiato é impossível de decifrar, dai esta intromissão)
"[...] Mas tu falas, perguntei eu, muito espantado?
16: Sim, falo.
Estou louco, o sol, o sal do mar, a erosão da solidão deixaram-me louco. Impossível, és um pedaço de madeira.
16: Chama-me o que quiseres, mas eu falo, e penso e vejo e sinto. Aproveita, já não estás só.
Sim, mas não andas pelo menos.
16: Não preciso, estou em todo o lado. Para todo e qualquer lado que vás, estarei lá, sempre que queiras, no espaço desta tua ilha.
Nem sei que te diga.
16: Mas diz-me, fala comigo, como vieste aqui parar? Há quanto tempo aqui estás?
Não sei pormenores, apenas que foi um naufrágio, quanto ao tempo, não sei dizer.
16: Há muito tempo que andas naufragado...
Que dizes? Que sabes tu?
16: Nada, apenas te julguei pelo aspecto, pelo lamento expresso pelo tom de voz, que estranhamente não se coaduna com o ânimo demonstrado. Dir-se-ia que estás suspenso.
Estranho, muito estranho, deixas-me estupefacto, o pouco que vês, o muito que sentes e sabes.
16: Sou assim, olho-te nos olhos e vejo uma luta enorme, um questionamento constante sobre o estar aqui, não aqui nesta ilha, mas o estar aqui no mundo. Acertei?
Sim, acertaste. Descurei-me de mim, tão pouco liguei ao muito que agora quero e vejo como próprio. Tanto liguei ao que agora repudio com todas as forças e que quase me destruiu. Permiti que a bruma do fácil envolvesse o que era tão claro, tão natural, como se fugisse de mim, tornando o que me era próximo distante.
16: O reconhecimento de si é um primeiro passo para a constituição e penso que estás no bom caminho. Vamos fazer um acordo.
Diz-me
16: Serei o teu companheiro, juntos pela força do diálogo, questionaremos o modo de estar, na tentativa de constituição de um modo de ser. Mas fiquemos por aqui hoje, estás cansado, sinto-o. Vai, repousa, e regressa a mim quando entenderes, mas não esqueças que estarei sempre contigo, assim o queiras."
(volta a dar-se um retorno ao relato)
Acordei, estava na praia, deitado ao sol, cansado de facto. Terei sonhado, pensei para comigo? Voltarei lá em breve, mas não, não pode ser, uma árvore que fala. Será a minha consciência? Estarei louco. Voltarei lá em breve.
E pronto, foi isto que me aconteceu há alguns dias atrás e ainda não voltei ao 16. Contudo sinto-o ao meu lado, estranho! De facto, decidir para mim ter uma consciência, um amigo, é uma coisa, decidir essa coisa não ser uma coisa, mas antes um ser e tornar-se ela a consciência, é algo completamente diferente. Sinto-me calmo contudo, estranhamente calmo.
Uma coisa é certa, nesta solidão, nesta luta contra a vontade de desistir, ganhei novo ânimo, novo fôlego para me manter na luta, não só pela minha sobrevivência, mas também, e acima de tudo, pela minha existência, pelo busca do meu fundamento. Tenho de lá voltar, afinal já não estou só.
A partir deste momento, tudo para mim é uma enorme questão, tudo para mim sou eu e a minha constituição, o esclarecimento de mim. Estou assim nesta ilha chamada Eu e tornei-me para mim um grande mistério. Tenho de lá voltar.
Fico por aqui hoje, o dia já cai.
Teu,
ML»
1 comentário:
Gosto muito destes teus textos. Devias pensar em publicar.
Um beijo da ilha :-)
Enviar um comentário