terça-feira, maio 25, 2010

Cartas de um naufrago - 7ª entrada

Segue a 7ª entrada do diário

Conforme foi apontado na última entrada, para além das dificuldades relativamente ao estado dos manuscritos, que tornam o trabalho muito moroso, o registo dos mesmos também mudou, passando a um misto de relato e relato do relato, desde que o naufrago encontrou o 16, ou aquilo que baptizou de 16.

«Uma manhã, algures [.................]debaixo de um calor abrasador

Atormenta-me este torpor do dia-a-dia, atormenta-me a espaços, pois que sei que aos poucos tenho vindo, apesar do bizarro da minha condição, entalado que estou entre o tudo que posso ser e o nada que sou, a retomar o controlo sobre a minha vontade. Nesse sentido, esta precariedade existencial tem sido útil, pois que nada mais me resta senão voltar-me para mim, para este continuo ponto de partida a caminho de qualquer coisa. Haverá alguma constância, pergunto-me eu? Qual a pedra a partir da qual me inscrevo e me ergo? Será a dúvida constante?
Este espaço de vazio, vazio no sentido que se preencherá com algo que não é gratuito, a vida, tem de ter um ponto de partida, ponto de partida que é ao mesmo tempo porto de chegada, pois que é fundamento, princípio norma [.....]

(E nisto o registo muda como se alguém tivesse chamado o naufrago. Este apontamento é de todo desnecessário e apenas serve para focar o trabalho feito por mim, como terceiro elemento, pois que se percebe claramente a mudança de registo)

Estava eu metido nestes buracos reflexivos quando oiço:

- Chamaste-me...... aqui estou.
Chamei-te, mas, mas como se estou na praia, e tu estás mata dentro...
16: Estás mesmo? estou mesmo?
Sim, estou e estás.... já não percebo nada outra vez. É assim quando te oiço, instala-se a dúvida!
16: Não me parece que assim seja, antes diz que quando se instala a dúvida parece que me queres ouvir, ou não estavas a reflectir sobre a dúvida quando te ouvi?
Agora é que me trocaste todo, mas sim, ainda bem que apareceste, mas que digo eu, apareceste, tu não te mexes.
16: Conforme te disse, após termos feito o nosso acordo, estou sempre contigo, estarei sempre contigo, assim o queiras. Agora, que me querias, visto que me chamaste. Todo eu sou ouvidos. Falavas em dúvida, dúvida de constituição a busca pelo fundamento, ou estarei enganado?
Bom, uma vez que aqui estás, falemos. Sim, interrogava-me sobre mim próprio, isto é, estando eu constantemente exposto ao vento, assim parece, sem qualquer luz relativamente ao ponto de chegada, e sendo o ponto de partida apenas um momento inscrito no passado, haverá alguma base nisto que sou?
16: Mas que és tu, já começaste por pensar nisso, uma vez que estás exposto ao vento?
Eu, eu aparentemente não sou nada, e corro como um fio de água entre mãos, pois que estando sempre a viver o presente, o mesmo parece dividir-se em agora (s) passados e agora (s) futuros.
16: Sim, concordo, é sempre um ir sendo, isso sem dúvida.
Então, que valor tem o ser, que valor tenho eu. Sou um barco à deriva. Porquê lutar para sair desta ilha?
16: Não te minto, és muito mais, no sentido do material, aquilo que está fora de ti, que não te pertence e não é teu, propriamente teu, mas é o teu ser que permite valorizar isso, para o bom e para o mau sentido. O valor de uma coisa é o teu valor.
Sim, mas nesse caso posso fazer tudo o quero, aqui pelo menos.
16: Sim, podes, mas não deves, e dai a razão da tua dúvida, dai o teu chamamento e isso mesmo neste sítio, onde ninguém te chama.
Não percebi agora 16.
16: Pensa em tudo o que escreveste até agora, pensa nas noites em branco, no aparente e inóspito peso do céu estrelado. O que buscas está em ti....
Mas não o vejo, se está, e se está, só me conduz à dúvida.
16: Por isso mesmo, é na dúvida, no questionamento constante que se encontra a base do fundamento que procuras, na base da dúvida estão as tuas crenças. Podendo parecer um paradoxo, não o é, pois indica um principio que permite colocares em causa o que te rodeia, até que chegaste a mim. Questionas, alcanças, investigas, defines, aceitas e segues. É este o teu ser.
Pois, mas e o fundamento, o fundamento, o que é?
16: A tua capacidade de duvidar, de rejeitar e de aceitar.
O poder de experimentar dizes tu, um teste constante, é nisto que se inscreve a vida?
16: Ora reflecte no que disseste, se procuras um fundamento e retratas o ser como um conjunto de agora (s) que parecem escapar-se como fio de água, consideras que a vida se inscreve na experiência?
Agora que o dizes, não, não pode ser, pois no fim nada fica.
16: Pois, podes dizer-me que a vida é feita de experiências, mas a vida não é uma experiência, melhor, a vida que permite a vida não é uma experiência.
Mas e o fundamento, o fundamento, será a dúvida?
16: Não, o fundamento permite a dúvida. É por ele que te questionas e duvidas.
O fundamento, dizes tu, que me ajudas, nada me dizes, só me questionas.
16: Eu não te questiono, tu questionaste-te e comprovas o que me dizes. Vê isso relativamente a mim, não paras de te questionar relativamente à minha existência e cada mais forte sou eu em ti.
Começas tu...
16: É um facto, não o escondas e sabes que é verdade. Assim o tenho sido, em todas estas noites e dias que andaste por esta ilha deste que falámos a primeira vez.
Mas qual o meu fundamento, qual o meu primeiro princípio?
16: Focaste aí um conceito importante, o de princípio. Podes defini-lo?
Principio? Algo a partir do qual as coisas começam, ou início de qualquer coisa.
16: É então a base, certo?
Sim, assim parece.
16:Ora bem, Focaste agora a questão fundamental, o princípio, os princípios. Não serão esses o teu fundamento? Não serão esses que te guiarão pela dúvida e pelas experiências? Não serão eles a pedra do teu ser? Ou não será assim?
Sim, mas que princípios?
16: Essa questão já não é minha meu caro. Ai começa o teu diálogo com o mundo, ai começam as tuas noites e os teus dias, mas vê o quão é importante, pois que nem aqui, onde nada que não tu próprio te atormenta, o problema te larga. A dúvida chama pelo princípio, o princípio é a pedra, a pedra é a essência.
A essência. É por ela que me devo reger?
16: Respondo-te com outra questão? Se não te deves reger por aquilo que colocas em causa, não deverás então reger-te sobre aquilo que permite a dúvida? Reflecte sobre o que dissemos, reflecte sobre esta questão, e já sabes, estou sempre contigo, assim o queiras. O meu ramo é o teu ombro, o meu tronco, o teu peito. Vai em paz

[...] E nisto recuperei do meu torpor, com este diálogo, mais uma vez bem inscrito na minha cabeça. Olhei em frente e estava frente àquela árvore a que chamo de 16. Não sei dizer o que se passou, mas tudo o que posso fazer, com a força que ainda me resta, é dizer que me sinto acompanhado, aconchegado, agora que cada vez me embrenho mais nesta busca por aquilo que sou.

Repousarei, o dia foi longo, pois que da manhã se fez já noite. Estranho, o peso deste céu, cada vez mais leve e cada vez mais belo.

Teu,

ML»









quinta-feira, maio 20, 2010

Notas acerca do Estado da Governação "Como o mundo muda depressa"

LLOSA, Mario Vargas, A Festa do Chibo, D. Quixote
Acedido em: http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=10679330

Ontem assisti ao jornal da noite na SIC notícias e confesso que fiquei assustado!!! Não pela crise, isso já não, mas pelo caos que se instalou no governo. A rubrica chamava-se " Como o Mundo muda depressa" e tinha como protagonistas três ministros portugueses e o nosso PM. Assim, relativamente à expressão e face ao mesmo assunto, cada um disse uma coisa diferente com o mesmo final, a saber, "é preciso é restaurar a confiança". Confiança na dúvida e no desespero que entre eles graça? Sinceramente, parecia uma qualquer página de Vargas Losa ou Garcia Marquez, pictorizada, sobre uma qualquer nação sul americana, momentos antes de um golpe de estado, por todos desmentido. Para finalizar, o puto da jota, poucos dias depois de assinar um acordo, mal sabe assinar e já assina acordos, manda uma bomba que poderá inflamar, os já de si inflamados ambientes, dos funcionários do estado. Tão novo e tão esperto, assina um acordo ao mesmo tempo que tenta assassinar um governo moribundo. Isto as Jotas dão mesmo escola. Parabéns.
E Nós!? nós assistimos impávidos e serenos. Após o 25 de Abril a frase comum era "O povo está sereno"! Hoje, 35 anos depois segundo Teixeira dos Santos e face ao que se passa na Grécia, revertendo para Portugal, a mesma frase ainda se aplica. Até quando? É caso para dizer: Quo Vadis Portugal

quarta-feira, abril 07, 2010

Lisboa, a nossa Lisboa


Cais das Colunas, Eduardo Neves

Lisboa é

Lisboa,

Lisboa é Alfama, é a Mouraria, é O Bairro Alto, são as senhoras de idade a pendurarem a roupa nas varandas já gastas pelo tempo enquanto discutem preços e maridos, maridos idos ao trabalho ou já idos da vida, mas que contudo persistem nos horizontes da memória.

Lisboa,

Lisboa é a Graça, O Carmo, O chiado, os miradouros de onde se vislumbra o Tejo e a Baixa, baixa por onde passeiam turistas e pessoas anónimas de diferentes credos e raças, com os seus cheiros e modos e que sem o saberem nos trazem o mundo. Trazem o mundo a Lisboa.

Lisboa,

Lisboa é o Restelo, a Ajuda, a 25 de Abril, o Oriente e o Parque das Nações, onde se corre e se fazem os passeios domingueiros ou de final de dia, com cães ou crianças, a sós ou acompanhados, namorados, casados, apaixonados ou enamorados, amores perdidos, amores achados, vividos ou apenas desejados, de qualquer uma das formas, com o amor pela mão, seja pelo outro, por si, ou pela vida.

Lisboa,

Lisboa é o cheiro a alcatrão quente nas filas de trânsito, a maresia no Cais do Sodré, a mercado no Livramento ou em Arroios. São os pedintes, os pintores, os transeuntes, os vendedores à socapa, a Luz e Alvalade, o Restelo e a tapadinha. Lisboa é o povo.

Lisboa,

Lisboa é Santos, Lisboa é a Avenida da Liberdade, o Parque Eduardo Sétimo, a Bica e o Adamastor. Lisboa é vida, é história, Lisboa é passado, presente e futuro. A ela chegamos, dela partiremos, nela crescemos. Lisboa é vida, é a nossa vida, a vida de quem por cá passou e deixou de ser o mesmo.

Lisboa,

Lisboa são os prédios por arranjar e aqueles que já o foram.

Lisboa,

Lisboa é Monsanto, o verde de mar ao fundo, é esta também a sua roupa, verde de mar ao fundo.

Lisboa,

Lisboa é a agitação dos dias que contrasta com a calma do Tejo nos dias de verão na sua eterna caminhada para o mar, onde todos os rios terminam, mas onde nenhum acaba.

Lisboa,

Lisboa és tu, é de ti a sua cor e o seu cheiro, é por ti que emerge do anonimato do pensamento que não pensa, do olho que não vê, do nariz que não cheira. Lisboa desperta e repousa contigo, agita-se na sua azáfama diária quando estás, fica dormente quanto partes.

Lisboa,

Lisboa és tu, nos passeios dados pelas ruas e avenidas, onde nada escapa, onde tudo escapa, onde o tempo não para de correr tal como o rio. Todos os tempos terminam, mas nenhum acaba.

Lisboa,

Lisboa és tu inscrita nos horizontes da memória, um dia relatada pela boca cujas mãos estenderão a roupa à janela e falarão do marido ido, ido ou já ido.

Lisboa,

Lisboa és tu, nas calçadas pisadas, nos lábios beijados, nas promessas feitas, na vida a par e passo construída.

Lisboa,

Lisboa és tu, um coração de pedra, água, vento, sons, barulhos e cheiros, que bate ao ritmo do dia-a-dia, que o é e bate porque tu estás.

Lisboa,

Lisboa és tu, quando te diz olá ao primeiro raio de sol que bate na janela, ou boa noite no apagar das velas.

Lisboa,

Lisboa és tu e agradece-te.

sexta-feira, março 19, 2010

O Estorninho e o Amor


Uma tarde de sol, na maior azáfama na floresta. Versa esta história sobre um Estorninho macho, que observava do alto do seu ramo e pensava para consigo...

"Sou um lobo solitário, é isso mesmo, sou um lobo solitário", pensava para com os seus botões o Estorninho, enquanto lavava a sua bela plumagem cinzenta e observava a azáfama dos demais, ajeitando os respectivos ninhos. É claro que estamos perante a um Estorninho com grandes problemas de identidade, assim parece, mas o que se passava é que o Estorninho em questão queria o amor verdadeiro, eterno, para lá da duração da estação da paixão. "Contrarias assim a tua essência", dizia-lhe a cigarra Sol Sustenido, assim apelidada pelo mocho, pois sempre que tentava dar a famigerada nota, falhava no abanar de patas. "És demasiado exigente contigo próprio, não podes ser assim" dizia-lhe a cigarra, aquando das suas intermináveis conversas que se estendiam noite dentro. Mais um final de tarde chegava e o Estorninho, regressado do rio, de plumagem limpa e arrumada, coloca-se no seu ramo e pensa " Sou um lobo solitário". Era mais um fim de tarde, como tantos outros, de sol radiante, vermelho, anunciando já o final da Primavera e o princípio do Verão. Num bando de estorninhos acabados de chegar, eis que a nossa ave vislumbra uma estorninho. Então, estica o seu pescoço e observa, mas rapidamente recua, voltando à sua costumeira calmaria, não conseguindo contudo disfarçar a prisão do olhar, aquele olhar que não engana, que foi tomado por um sentimento impossível de fugir ou de ignorar. "Eu conheço esse olhar", exclama Sol Sustenido, "Eu conheço esse olhar.....", volta a dizê-lo, abanando as suas patas e emitindo aquele som que rapidamente identificamos e gostamos de ouvir quando passeamos pelos campos ou nos deitamos a gozar o sol abraçados pela suavidade natural da seara. "Cala-te, não quero ouvir isso, sabes que não posso, não quero e não posso", mas o vislumbre daquela estorninho não mais saiu da sua cabeça e rapidamente começou a conquistar aquele coração, que para o amor queria-se de pedra.
Os dias foram passando, no seu passo cadenciado, sem nada de muito novo, sem nada de muito velho e o verão finalmente chegou. O estorninho, durante o dia, ia observando a sua estorninho, sem fazer o que quer que fosse. À noite, passeava de ramo em ramo com a cigarra, conversando sobre tudo e sobre nada. Numa dessas noites, por sinal extremamente quente, enquanto conversavam, o Estorninho e a Cigarra, junto ao ninho do mocho, eis que passa a estorninho, a esvoaçar, calmamente, aproveitando as correntes quentes para planar. Imediatamente, como que toldado por uma qualquer manifestação de beleza natural, daquelas que paralisam o comum dos mortais e quase o cegam, o nosso estorninho perde o pio, ficando impávido e sereno a olhar para aquela ave que esvoaçava elegante à sua frente, saltitando de ramo em ramo, com aquela graça digna dos deuses e dos predestinados. Nisto, a estorninho faz uma volta no ar e aproxima-se "Olá, eu sou a Piluça,e sou uma estorninho" e larga-se num sorrir desenfreado, que é como quem diz, piar de um certo modo específico que na tradução de "piez" para "humanez" equivale a sorrir. " Vocês, quem são?" A cigarra, na sua natural musicalidade, logo respondeu " Sol Sustenido é o meu nome, mas diz-me, Piluça, que raio de nome é esse?" E, novamente, soltando-se num riso desenfreado, a estorninho responde, "Peluche que é um urso, Piluça, pois sou fêmea" e novo riso desenfreado. Entretanto, ambos viram o seu olhar para cima e observam o Estorninho impávido e sereno e a Piluça comenta baixinho "Quem é este quem nem olá disse?" "É o Lírico, baptizei-o eu", "Lírico, muito bem, mas o que ele é, é arrogante, ali de pescoço para o ar, sem nada dizer."
"Não falas tu", questiona a Piluça, entre um bater de asas e esticar o pescoço. "Olá, desculpa, não reparei que tinhas chegado e, como a cigarra falou, optei por aguardar. Sou o Lírico" responde o estorninho, entre um sacudir de corpo e inchar de peito, que nada tinha de vaidade ou arrogância, mas antes de auto-defesa, pois mal sabia a Piluça o que lhe já ia na alma. Mas ele não podia, não podia. Sem adivinhar tal coisa, Piluça volta a sussurar com a cigarra " Que arrogante!, minha nossa, que paciência, deve ter o rei na barriga" ao que o Sol Sustenido responde "Não tem não, é aliás muito divertido, apenas não te conhece, olha, repara quem vem lá, a raposa Lezíria. Rapara como a cumprimenta!" .Lírico, observando Lezíria que se aproxima, salta do seu ramo aterrando directamente no seu dorso: "Olá minha amiga, que tal vai isso, há muito que não se deixava ver" ao que a raposa responde "Há muito?! Paspalhão! Ainda ontem estivemos de conversa até às tantas... mau mau maria, que te apoquenta, já te conheço. Vá, desembucha". "Irra, dormiste mal ou caiu-te mal a galinha do almoço?! Disfarça minha atrevida desbocada, não reparaste quem nos olha?". Curiosa, a raposa Lezíria, olha para cima e para o lado e exclama "A cigarra eu reconheço, os olhares do costume, mas quem é aquela, que não pára de rir?" Depois de dizer isto, olha de novo para o Lírico, que se encontrava completamente embevecido a olhar para a estorninho. O seu olhar era o de um perdido, completamente perdido e tomado pelo dia. "Olha, olha, passarinho na gaiola, está bonito está.. Acorda pardalinho, quem é aquela?" Estorninho, o Lírico, recupera-se, julga ele, pois que nada escapava à raposa e diz "Não sei, diz que se chama Piluça, já viste que nome, Piluça, isso lá é nome de gente...", "Não é gente, felizmente, é uma ave e entre nós, essas convenções dos nomes não existem. Só a beleza e o sonho valem e e não disfarces que a mim não me consegues esconder nada". Dito isto, empinando o pescoço para cima diz "olá, disseram-me aqui à orelha que te chamas Piluça", "sim, chamo", respondeu a piluça entre mais um par de sorrisos. Ouvindo a conversa, a cigarra, voltando-se para a estorninho diz "vês, vês como é simpático?". Não se mostrando convencida, a estorninho contesta " Não me convence, é arrogante e antipático", mas tal como o Lírico, não conseguiu disfarçar o impulso que a levava a não arredar pé dali, apesar do avançar das horas. Algo a prendia, sem dúvida alguma.
Passada esta azáfama inicial, característica dos grupos onde alguém de novo chega, os dias retomaram o seu curso e Lírico, Sol Sustenido e Lezíria, os companheiros do costume, voltam aos passeios de fim de tarde e noite. Ainda assim, a cadência normal era aqui e ali alterada pela visita de Piluça, com o seu sorriso incessante e ar saltitão.
Certa tarde, andava o nosso Lírico embrulhado nos seus pensamentos, quando ouve um chamamento "Olá, está bom o senhor?", visivelmente espantado, vira-se para trás e num ramo ligeiramente acima do seu, estava Piluça, pousada com um sorriso maior que o próprio bico. "Podes tratar-me por tu", respondeu. E pronto, a partir desse dia passaram a dar, a espaços, de forma muito recatada, longos passeios rente ao riacho e pelos ramos das árvores frondosas que se estendiam a perder de vista. "Pequenos eram os olhos para absorver tão grande mundo, mas uma alma enorme está por trás dos mesmos" pensava para consigo Lírico cada vez mais absorvido por aquele olhar vivo e por aquela graça, que parecia irradiar daquele ser que lhe havia prendido o olhar deste o primeiro instante e que contagiava tudo à sua volta. E lá correram os dias. A espaços, a cigarra, dizia " Não fujas ao que está à vista de toda a gente" sendo que a raposa, aparentemente descarada e desbocada, revelava-se mais prudente e raramente adiantava o que quer que fosse face ao enredo que subtilmente se desenhava ao sabor da velocidade dos dias. Ainda que sobre a mesma história, esses tinham velocidades diferentes para cada um dos envolvidos. Para o par de estorninhos, as horas pareciam-lhes curtas, demasiadamente curtas, mas aos restantes, perfeitamente normais. Eis que numa noite de verão, Lírico, canta para Piluça e declara-se de forma séria e convicta, aquela forma de quem sabe o que quer e como quer, longe do instinto e da frugalidade, de forma romântica e apaixonada. A princípio, o encantamento parece ser correspondido. Porém, chegado o meio da estação, o resultado não é o esperado, piluça retrai-se "Não estou preparada, o mundo é enorme; fiquemos amigos" e parte para junto da família. As lágrimas caem pelas plumas de Lírico, enquanto pia à lua incessantemente. Cá de baixo, tal como lá de cima, há quem observe (mistérios da existência) e a prudente Lezíria, não abordando o assunto, (sim porque é um erro catalogar a raposa de metediça. É antes atenta só se mete com a segurança de quem ataca a presa na hora certa) incentiva-o e acompanha-o, sempre. E corre a estação, Lezíria a companheira, Sol Sustenido o companheiro.
Aproxima-se o final do verão e os bandos de estorninhos começam a regressar ao pasto de Lírico, Sustenido e Lezíria e eis que num dia regressa Piluça, alegre e saltitante como sempre, cumprimentando-os de imediato e demonstrando alguma reserva e distância para com Lírico. "Como te sentes" questiona a cigarra, "bem, muito bem" responde Lírico disfarçando para meio mundo a amargura que lhe corria no peito, até pelo comportamento de Piluça para com ele. Já Lezíria, não fugindo ao seu ser próprio, reserva-se, observa e acompanha, sempre, como é seu apanágio. Os dias correm à sua velocidade normal. Sim, agora as velocidades eram todas iguais, não significando isto monotonia, muito pelo contrário, pois aos três amigos, havia um rol de animais que se lhes juntava em companhia e faziam, a espaços, uma festa no sítio mais alto do pasto, a que Piluça não chegava a horas ou pura e simplesmente não ia. Lírico mantinha-se firme, firme por fora, dilacerado por dentro. Era contudo uma ave forte e bem acompanhada.
E os dias foram correndo e com eles o tecer da vida. A alegria e a paz pareciam ter voltado àquele grupo, atarefado em realizar um festival de outono, onde alguns participaríam mas todos seriam convidados a assistir e, claro está, ao repasto que lhe seguiria. Piluça parecia regressar ao grupo, mas sempre com avanços e recuos, notando contudo que a atenção de Lírico já não era a mesma e não podia mesmo ser, pois o coração de uma ave é frágil e magoa-se com muita facilidade, se bem que esta fosse "de boa cepa, mas não de ferro" como lhe costumava dizer a amiga Lezíria, fiel companheira. Já Sol Sustenido, desconhecedor da dor que lhe cortava o peito, admirava a sua altivez e independência, bem como a sua capacidade de resistência, perguntando-lhe repetidas vezes "Como é que consegues? Gostava de ser assim, apesar de continuar a achar que te negas e castigas em demasia". Apesar disso, era clara a desconfiança em tamanha força.
Volvido algum tempo, numa dessas noites de folia, no sítio mais alto do pasto, Lírico, embalado pelos festejos em torno do aniversário da fiel companheira e pelos olhares e permissões do seu amor, embora de forma sempre subtil, baixa a sua guarda e canta a plenos pulmões o seu amor em forma de serenatas, acompanhado pela melodia de Sol Sustenido. Contrariando todos os anseios, esse amor, não só não foi correspondido como foi questionado: "Amor, como pode ser amor?". Foi o golpe fatal! Lírico sentiu-se atingido no seu coração e na sua alma. Por entre a confusão e sem que ninguém perceba, volta-se para Piluça e diz-lhe "Achas mesmo que não é amor, pões em causa o meu sentir e a minha razão? Não te preocupes em responder pois esta dor termina hoje. Tens daqui até ao momento em que eu pousar no meu ramo para pensares no que queres para a tua vida. A partir desse momento, aceito-te para sempre só como amiga e sem voltar atrás." Tremeu ao pronunciar tais palavras e questionou a sua própria decisão, mas foi ganhando força ao ver que Piluça, a forte piluça desfalecia a cada sílaba, abrindo o seu bico enquanto ficava estupefacta com o que ouvia.
E a noite correu e terminou. Quando se preparava para dormir, Lírico ouve um ruído à porta do seu ninho. Pensa duas vezes, não resiste e saí. Era piluça, iluminada pelo Lua, pela lua e pela graça que caracterizava a sua beleza e forma de ser. Nisto, coloca a sua asa por cima da de Lírico que a estende quase sem resistência e diz " Tens de ter paciência, preciso de tempo, mas é de ti que gosto. Tem calma e dorme descansado. Falaremos com calma com o raiar do sol, o renovar do dia." Lírico, baixa a cabeça, pensa e repensa, no que resultou um momento suspenso, de reflexão. De seguida, levanta a cabeça e responde "Sim, claro, conheço-te desde sempre. Ainda antes de te conhecer, já te conhecia e não tenho como dizer que não".
E assim termina, ou melhor, se inicia a história de amor entre Lírico e Piluça, um casal de estorninhos, que se encontrou num pasto banhado por um riacho.
Consta que, ainda hoje, se tratam por queridos, mesmo quando discutem,e dormem asa com asa, no conforto do ninho que é o deles.


terça-feira, março 16, 2010

Cartas de um naufrago - 6ª entrada

Segue a 6ª entrada do diário

Na primeira entrada, ou carta, foi referido que não seriam feitas considerações sobre ou alterações na estrutura do texto. Contudo, face à peculiaridade desta carta, foi necessário fazer uma chamada de atenção para a mudança de registo, pontual, de relato para diálogo. A degradação da carta impede um esclarecimento mais profundo.

«Final de tarde, um dia qualquer desta metamorfose temporal que sou eu e o mundo [....]. O tempo está agradável, dir-se-ia um final de tarde de verão, mas na ausência de convenção, é apenas um final de tarde agradável. Cá estou eu, desta vez não no areal, perscrutando o horizonte, mas antes no topo de um penhasco, a vislumbrar uma das enseadas desta ilha, enseada essa que se assemelha aqueles sítios onde os afluentes dos rios terminam, ou fazem uma curva, deixando uma espécie de praia. A vista é fabulosa, inebriante mesmo. O azul do mar, o areal, povoado de pedras pequenas e grandes, com o verde da mata por trás [...]cujas árvores à distância, aquela distância que ao homem permite a ilusão por defeito de condição, parecem dispostas em fila de forma extremamente organizada [...] é-me profundamente familiar, tornando este sítio ainda mais belo! Como já disse e penso, como é possível um sítio tão distante me parecer tão próximo?

Vou agora relatar um episódio que me aconteceu há alguns dias atrás. Alguns dias, penso eu que foram alguns dias, não sei, perco o fio à meada com muita facilidade, pois não tenho como me regular, senão pela fome ou pelo cansaço. Puro instinto na condução da existência, ou sobrevivência, e tanto tempo para a reflexão, para o uso da razão. Interrogo-me agora, ainda mais, como seria a vida de um animal, um leão, um cão, por hipótese, se tivesse razão?

Relativamente ao episódio, como havia relatado, nos meus passeios pela ilha encontrei uma escultura de madeira, pelo menos identifico-a como tal. Estava eu sentado no areal, a mirar o horizonte, quando decidi ir ter com a escultura de madeira. Uma vez frente à mesma, acabei por de lhe dar um nome, "16, serás o 16, faço-o em memória do meu avô, que atribuía números a tudo. Nunca soube o porquê, mas para além do seu feitio peculiar, atribuo o facto ao não saber ler nem escrever"!

Quando me preparava para voltar, aquela coisa aparentemente inane disse-me "Olá". Esbocei um sorriso, atribui o facto ao desespero da solidão e segui caminho. De repente ouvi chamar, e há quanto tempo não ouvia ninguém chamar-me. Parei e voltei atrás. De repente perguntou o meu nome ao que respondi "não sei, já não sei, pois que o que me tornei não sou eu, e estou na viagem de regresso, como tal não sei o que te responder" e dei por mim a falar com/para uma árvore, com o 16, uma árvore que era escultura de madeira, escultura que eu nem sabia muito bem se era, árvore que já não era. [...]! (Aqui o relato passa à diálogo, como se de uma transcrição da conversa se tratasse. o hiato é impossível de decifrar, dai esta intromissão)

"[...] Mas tu falas, perguntei eu, muito espantado?
16: Sim, falo.
Estou louco, o sol, o sal do mar, a erosão da solidão deixaram-me louco. Impossível, és um pedaço de madeira.
16: Chama-me o que quiseres, mas eu falo, e penso e vejo e sinto. Aproveita, já não estás só.
Sim, mas não andas pelo menos.
16: Não preciso, estou em todo o lado. Para todo e qualquer lado que vás, estarei lá, sempre que queiras, no espaço desta tua ilha.
Nem sei que te diga.
16: Mas diz-me, fala comigo, como vieste aqui parar? Há quanto tempo aqui estás?
Não sei pormenores, apenas que foi um naufrágio, quanto ao tempo, não sei dizer.
16: Há muito tempo que andas naufragado...
Que dizes? Que sabes tu?
16: Nada, apenas te julguei pelo aspecto, pelo lamento expresso pelo tom de voz, que estranhamente não se coaduna com o ânimo demonstrado. Dir-se-ia que estás suspenso.
Estranho, muito estranho, deixas-me estupefacto, o pouco que vês, o muito que sentes e sabes.
16: Sou assim, olho-te nos olhos e vejo uma luta enorme, um questionamento constante sobre o estar aqui, não aqui nesta ilha, mas o estar aqui no mundo. Acertei?
Sim, acertaste. Descurei-me de mim, tão pouco liguei ao muito que agora quero e vejo como próprio. Tanto liguei ao que agora repudio com todas as forças e que quase me destruiu. Permiti que a bruma do fácil envolvesse o que era tão claro, tão natural, como se fugisse de mim, tornando o que me era próximo distante.
16: O reconhecimento de si é um primeiro passo para a constituição e penso que estás no bom caminho. Vamos fazer um acordo.
Diz-me
16: Serei o teu companheiro, juntos pela força do diálogo, questionaremos o modo de estar, na tentativa de constituição de um modo de ser. Mas fiquemos por aqui hoje, estás cansado, sinto-o. Vai, repousa, e regressa a mim quando entenderes, mas não esqueças que estarei sempre contigo, assim o queiras."

(volta a dar-se um retorno ao relato)

Acordei, estava na praia, deitado ao sol, cansado de facto. Terei sonhado, pensei para comigo? Voltarei lá em breve, mas não, não pode ser, uma árvore que fala. Será a minha consciência? Estarei louco. Voltarei lá em breve.

E pronto, foi isto que me aconteceu há alguns dias atrás e ainda não voltei ao 16. Contudo sinto-o ao meu lado, estranho! De facto, decidir para mim ter uma consciência, um amigo, é uma coisa, decidir essa coisa não ser uma coisa, mas antes um ser e tornar-se ela a consciência, é algo completamente diferente. Sinto-me calmo contudo, estranhamente calmo.
Uma coisa é certa, nesta solidão, nesta luta contra a vontade de desistir, ganhei novo ânimo, novo fôlego para me manter na luta, não só pela minha sobrevivência, mas também, e acima de tudo, pela minha existência, pelo busca do meu fundamento. Tenho de lá voltar, afinal já não estou só.

A partir deste momento, tudo para mim é uma enorme questão, tudo para mim sou eu e a minha constituição, o esclarecimento de mim. Estou assim nesta ilha chamada Eu e tornei-me para mim um grande mistério. Tenho de lá voltar.

Fico por aqui hoje, o dia já cai.


Teu,

ML»





domingo, fevereiro 28, 2010

Cartas de um Naufrago - 5ª entrada

Boa noite,

Desde já as minhas humildes desculpas pelas demoras nas publicações das Cartas de um Naufrago, mas as folhas estão de facto muito degradadas, pelo que exigem que os trabalhos de leitura, que são também de recuperação, decorram a um ritmo muito lento, fruto do cuidado exigido. Muito obrigado.

Segue a 5ª entrada do diário

«Algures no meio do nada, pelo final da tarde, mas cada vez mais de regresso a mim,

Os dias correm na sua velocidade normal, sem nada de novo, nem nada de muito velho, pois é assim o tempo, não tem tempo, pois que o é na sua totalidade. Tomaríamos nós podermos ser como ele. Nesta passagem dos dias, vou-me remetendo cada vez mais às memórias, ao feito, ao vivido, pois que o que me rodeia, neste meu isolamento, não havendo interacção não pode produzir uma construção, futuro, continuidade. Essa agora cabe-me a mim, neste monólogo, até aguentar ou até partir, seja daqui, seja ficando aqui e partindo para uma outra realidade. Resistir ou partir, enfim, a nossa condição.

Ultimamente, de cada vez que deambulo pelos caminhos da memória, a ideia de liberdade não me sai da minha cabeça. Antes desta tempestade que me arrastou para este local, só a ideia de perder a "minha liberdade" assustava-me, sendo que cheguei a recear que a mesma se tornasse um vício. Mas que é enfim a liberdade? Pergunto-me isto, porque nesta minha condição não estando preso a nada que não a mim, sinto-me o mais apertado dos prisioneiros. Sim, posso fazer tudo o que me apetece, mas para onde me conduz isso? Posso gritar, escrever na temporalidade da areia, que dura o espaço de um ir e vir da ondulação, o que me apetecer, mas onde me conduz isso? Quem me apoia, quem me reconhece, quem me critica, quem me abraça, quem me protege, com quem choro, com quem riu? Estou absolutamente livre, estou absolutamente refém, refém daquilo que temos de mais fraco, a nossa pura "perantidade "nós próprios, o estar aqui, a sós connosco, onde já nem Deus nos vale, pois que o meu coração, onde ele reside, ficou mudo.

Não posso crescer, não posso ser repreendido, encaminhado, aconselhado, refreado., impulsionado. Sou como um cavalo à solta, mas ao contrário do cavalo cujo instinto o leva a correr e a sobreviver, o meu ser racional precisa de mais, precisa de ti, precisa de mim, precisa de nós, para viver, pois que sou mais que o domínio do próprio. Sim, descobri, sou mais livre estando num sistema e todo o trabalho do humano deve ser sobre o sistema e nunca sobre a inexistência do mesmo. Vejo-me assim perdido e encontrado numa ilha chamada Eu, sim é o melhor nome que lhe posso dar.

Preciso de um amigo, o monstro precisa de um amigo, precisa de uma consciência externa, pois o coração está mudo.

Nestes meus passeios pela ilha na qual me encontro, percorrendo os caminhos outrora percorridos por alguém, descobri uma espécie de escultura em madeira. Podem ser os meus olhos a iludir-me e não passar apenas de uma árvore rasgada por um raio, ou por outro acontecimento natural qualquer, mas para mim é uma escultura e será doravante o meu amigo e conselheiro. Arranjei umas ervas secas e coloquei-as no topo da "escultura", dando-lhe o aspecto de possuir uma farta cabeleira loura. Engraçado, a voz da minha consciência espelhada por uma cabeleira loura. Um pouco de humor nesta lassidão.

O sol põe-se no horizonte, não se vislumbra nada, não corre uma aragem que seja. O céu está de um azul maravilhoso que emparelha na perfeição com o mar. A ondulação abraça suavemente as margens da praia onde me encontro sentado, a mordiscar uma peça de fruta. Estou só e quero ser livre, e para tal preciso de mim. Quero sobreviver para poder viver. Vou erguer-me e renascer, para poder ser livre, partir daqui para chegar a ti, meu porto, de braço dado comigo.

[...]

ML»