«Uma manhã, algures [.................]debaixo de um calor abrasador
Atormenta-me este torpor do dia-a-dia, atormenta-me a espaços, pois que sei que aos poucos tenho vindo, apesar do bizarro da minha condição, entalado que estou entre o tudo que posso ser e o nada que sou, a retomar o controlo sobre a minha vontade. Nesse sentido, esta precariedade existencial tem sido útil, pois que nada mais me resta senão voltar-me para mim, para este continuo ponto de partida a caminho de qualquer coisa. Haverá alguma constância, pergunto-me eu? Qual a pedra a partir da qual me inscrevo e me ergo? Será a dúvida constante?
Este espaço de vazio, vazio no sentido que se preencherá com algo que não é gratuito, a vida, tem de ter um ponto de partida, ponto de partida que é ao mesmo tempo porto de chegada, pois que é fundamento, princípio norma [.....]
(E nisto o registo muda como se alguém tivesse chamado o naufrago. Este apontamento é de todo desnecessário e apenas serve para focar o trabalho feito por mim, como terceiro elemento, pois que se percebe claramente a mudança de registo)
Estava eu metido nestes buracos reflexivos quando oiço:
- Chamaste-me...... aqui estou.
Chamei-te, mas, mas como se estou na praia, e tu estás mata dentro...
16: Estás mesmo? estou mesmo?
Sim, estou e estás.... já não percebo nada outra vez. É assim quando te oiço, instala-se a dúvida!
16: Não me parece que assim seja, antes diz que quando se instala a dúvida parece que me queres ouvir, ou não estavas a reflectir sobre a dúvida quando te ouvi?
Agora é que me trocaste todo, mas sim, ainda bem que apareceste, mas que digo eu, apareceste, tu não te mexes.
16: Conforme te disse, após termos feito o nosso acordo, estou sempre contigo, estarei sempre contigo, assim o queiras. Agora, que me querias, visto que me chamaste. Todo eu sou ouvidos. Falavas em dúvida, dúvida de constituição a busca pelo fundamento, ou estarei enganado?
Bom, uma vez que aqui estás, falemos. Sim, interrogava-me sobre mim próprio, isto é, estando eu constantemente exposto ao vento, assim parece, sem qualquer luz relativamente ao ponto de chegada, e sendo o ponto de partida apenas um momento inscrito no passado, haverá alguma base nisto que sou?
16: Mas que és tu, já começaste por pensar nisso, uma vez que estás exposto ao vento?
Eu, eu aparentemente não sou nada, e corro como um fio de água entre mãos, pois que estando sempre a viver o presente, o mesmo parece dividir-se em agora (s) passados e agora (s) futuros.
16: Sim, concordo, é sempre um ir sendo, isso sem dúvida.
Então, que valor tem o ser, que valor tenho eu. Sou um barco à deriva. Porquê lutar para sair desta ilha?
16: Não te minto, és muito mais, no sentido do material, aquilo que está fora de ti, que não te pertence e não é teu, propriamente teu, mas é o teu ser que permite valorizar isso, para o bom e para o mau sentido. O valor de uma coisa é o teu valor.
Sim, mas nesse caso posso fazer tudo o quero, aqui pelo menos.
16: Sim, podes, mas não deves, e dai a razão da tua dúvida, dai o teu chamamento e isso mesmo neste sítio, onde ninguém te chama.
Não percebi agora 16.
16: Pensa em tudo o que escreveste até agora, pensa nas noites em branco, no aparente e inóspito peso do céu estrelado. O que buscas está em ti....
Mas não o vejo, se está, e se está, só me conduz à dúvida.
16: Por isso mesmo, é na dúvida, no questionamento constante que se encontra a base do fundamento que procuras, na base da dúvida estão as tuas crenças. Podendo parecer um paradoxo, não o é, pois indica um principio que permite colocares em causa o que te rodeia, até que chegaste a mim. Questionas, alcanças, investigas, defines, aceitas e segues. É este o teu ser.
Pois, mas e o fundamento, o fundamento, o que é?
16: A tua capacidade de duvidar, de rejeitar e de aceitar.
O poder de experimentar dizes tu, um teste constante, é nisto que se inscreve a vida?
16: Ora reflecte no que disseste, se procuras um fundamento e retratas o ser como um conjunto de agora (s) que parecem escapar-se como fio de água, consideras que a vida se inscreve na experiência?
Agora que o dizes, não, não pode ser, pois no fim nada fica.
16: Pois, podes dizer-me que a vida é feita de experiências, mas a vida não é uma experiência, melhor, a vida que permite a vida não é uma experiência.
Mas e o fundamento, o fundamento, será a dúvida?
16: Não, o fundamento permite a dúvida. É por ele que te questionas e duvidas.
O fundamento, dizes tu, que me ajudas, nada me dizes, só me questionas.
16: Eu não te questiono, tu questionaste-te e comprovas o que me dizes. Vê isso relativamente a mim, não paras de te questionar relativamente à minha existência e cada mais forte sou eu em ti.
Começas tu...
16: É um facto, não o escondas e sabes que é verdade. Assim o tenho sido, em todas estas noites e dias que andaste por esta ilha deste que falámos a primeira vez.
Mas qual o meu fundamento, qual o meu primeiro princípio?
16: Focaste aí um conceito importante, o de princípio. Podes defini-lo?
Principio? Algo a partir do qual as coisas começam, ou início de qualquer coisa.
16: É então a base, certo?
Sim, assim parece.
16:Ora bem, Focaste agora a questão fundamental, o princípio, os princípios. Não serão esses o teu fundamento? Não serão esses que te guiarão pela dúvida e pelas experiências? Não serão eles a pedra do teu ser? Ou não será assim?
Sim, mas que princípios?
16: Essa questão já não é minha meu caro. Ai começa o teu diálogo com o mundo, ai começam as tuas noites e os teus dias, mas vê o quão é importante, pois que nem aqui, onde nada que não tu próprio te atormenta, o problema te larga. A dúvida chama pelo princípio, o princípio é a pedra, a pedra é a essência.
A essência. É por ela que me devo reger?
16: Respondo-te com outra questão? Se não te deves reger por aquilo que colocas em causa, não deverás então reger-te sobre aquilo que permite a dúvida? Reflecte sobre o que dissemos, reflecte sobre esta questão, e já sabes, estou sempre contigo, assim o queiras. O meu ramo é o teu ombro, o meu tronco, o teu peito. Vai em paz
[...] E nisto recuperei do meu torpor, com este diálogo, mais uma vez bem inscrito na minha cabeça. Olhei em frente e estava frente àquela árvore a que chamo de 16. Não sei dizer o que se passou, mas tudo o que posso fazer, com a força que ainda me resta, é dizer que me sinto acompanhado, aconchegado, agora que cada vez me embrenho mais nesta busca por aquilo que sou.
Repousarei, o dia foi longo, pois que da manhã se fez já noite. Estranho, o peso deste céu, cada vez mais leve e cada vez mais belo.
Teu,
ML»