Uma tarde de sol, na maior azáfama na floresta. Versa esta história sobre um Estorninho macho, que observava do alto do seu ramo e pensava para consigo...
"Sou um lobo solitário, é isso mesmo, sou um lobo solitário", pensava para com os seus botões o Estorninho, enquanto lavava a sua bela plumagem cinzenta e observava a azáfama dos demais, ajeitando os respectivos ninhos. É claro que estamos perante a um Estorninho com grandes problemas de identidade, assim parece, mas o que se passava é que o Estorninho em questão queria o amor verdadeiro, eterno, para lá da duração da estação da paixão. "Contrarias assim a tua essência", dizia-lhe a cigarra Sol Sustenido, assim apelidada pelo mocho, pois sempre que tentava dar a famigerada nota, falhava no abanar de patas. "És demasiado exigente contigo próprio, não podes ser assim" dizia-lhe a cigarra, aquando das suas intermináveis conversas que se estendiam noite dentro. Mais um final de tarde chegava e o Estorninho, regressado do rio, de plumagem limpa e arrumada, coloca-se no seu ramo e pensa " Sou um lobo solitário". Era mais um fim de tarde, como tantos outros, de sol radiante, vermelho, anunciando já o final da Primavera e o princípio do Verão. Num bando de estorninhos acabados de chegar, eis que a nossa ave vislumbra uma estorninho. Então, estica o seu pescoço e observa, mas rapidamente recua, voltando à sua costumeira calmaria, não conseguindo contudo disfarçar a prisão do olhar, aquele olhar que não engana, que foi tomado por um sentimento impossível de fugir ou de ignorar. "Eu conheço esse olhar", exclama Sol Sustenido, "Eu conheço esse olhar.....", volta a dizê-lo, abanando as suas patas e emitindo aquele som que rapidamente identificamos e gostamos de ouvir quando passeamos pelos campos ou nos deitamos a gozar o sol abraçados pela suavidade natural da seara. "Cala-te, não quero ouvir isso, sabes que não posso, não quero e não posso", mas o vislumbre daquela estorninho não mais saiu da sua cabeça e rapidamente começou a conquistar aquele coração, que para o amor queria-se de pedra.
Os dias foram passando, no seu passo cadenciado, sem nada de muito novo, sem nada de muito velho e o verão finalmente chegou. O estorninho, durante o dia, ia observando a sua estorninho, sem fazer o que quer que fosse. À noite, passeava de ramo em ramo com a cigarra, conversando sobre tudo e sobre nada. Numa dessas noites, por sinal extremamente quente, enquanto conversavam, o Estorninho e a Cigarra, junto ao ninho do mocho, eis que passa a estorninho, a esvoaçar, calmamente, aproveitando as correntes quentes para planar. Imediatamente, como que toldado por uma qualquer manifestação de beleza natural, daquelas que paralisam o comum dos mortais e quase o cegam, o nosso estorninho perde o pio, ficando impávido e sereno a olhar para aquela ave que esvoaçava elegante à sua frente, saltitando de ramo em ramo, com aquela graça digna dos deuses e dos predestinados. Nisto, a estorninho faz uma volta no ar e aproxima-se "Olá, eu sou a Piluça,e sou uma estorninho" e larga-se num sorrir desenfreado, que é como quem diz, piar de um certo modo específico que na tradução de "piez" para "humanez" equivale a sorrir. " Vocês, quem são?" A cigarra, na sua natural musicalidade, logo respondeu " Sol Sustenido é o meu nome, mas diz-me, Piluça, que raio de nome é esse?" E, novamente, soltando-se num riso desenfreado, a estorninho responde, "Peluche que é um urso, Piluça, pois sou fêmea" e novo riso desenfreado. Entretanto, ambos viram o seu olhar para cima e observam o Estorninho impávido e sereno e a Piluça comenta baixinho "Quem é este quem nem olá disse?" "É o Lírico, baptizei-o eu", "Lírico, muito bem, mas o que ele é, é arrogante, ali de pescoço para o ar, sem nada dizer."
"Não falas tu", questiona a Piluça, entre um bater de asas e esticar o pescoço. "Olá, desculpa, não reparei que tinhas chegado e, como a cigarra falou, optei por aguardar. Sou o Lírico" responde o estorninho, entre um sacudir de corpo e inchar de peito, que nada tinha de vaidade ou arrogância, mas antes de auto-defesa, pois mal sabia a Piluça o que lhe já ia na alma. Mas ele não podia, não podia. Sem adivinhar tal coisa, Piluça volta a sussurar com a cigarra " Que arrogante!, minha nossa, que paciência, deve ter o rei na barriga" ao que o Sol Sustenido responde "Não tem não, é aliás muito divertido, apenas não te conhece, olha, repara quem vem lá, a raposa Lezíria. Rapara como a cumprimenta!" .Lírico, observando Lezíria que se aproxima, salta do seu ramo aterrando directamente no seu dorso: "Olá minha amiga, que tal vai isso, há muito que não se deixava ver" ao que a raposa responde "Há muito?! Paspalhão! Ainda ontem estivemos de conversa até às tantas... mau mau maria, que te apoquenta, já te conheço. Vá, desembucha". "Irra, dormiste mal ou caiu-te mal a galinha do almoço?! Disfarça minha atrevida desbocada, não reparaste quem nos olha?". Curiosa, a raposa Lezíria, olha para cima e para o lado e exclama "A cigarra eu reconheço, os olhares do costume, mas quem é aquela, que não pára de rir?" Depois de dizer isto, olha de novo para o Lírico, que se encontrava completamente embevecido a olhar para a estorninho. O seu olhar era o de um perdido, completamente perdido e tomado pelo dia. "Olha, olha, passarinho na gaiola, está bonito está.. Acorda pardalinho, quem é aquela?" Estorninho, o Lírico, recupera-se, julga ele, pois que nada escapava à raposa e diz "Não sei, diz que se chama Piluça, já viste que nome, Piluça, isso lá é nome de gente...", "Não é gente, felizmente, é uma ave e entre nós, essas convenções dos nomes não existem. Só a beleza e o sonho valem e e não disfarces que a mim não me consegues esconder nada". Dito isto, empinando o pescoço para cima diz "olá, disseram-me aqui à orelha que te chamas Piluça", "sim, chamo", respondeu a piluça entre mais um par de sorrisos. Ouvindo a conversa, a cigarra, voltando-se para a estorninho diz "vês, vês como é simpático?". Não se mostrando convencida, a estorninho contesta " Não me convence, é arrogante e antipático", mas tal como o Lírico, não conseguiu disfarçar o impulso que a levava a não arredar pé dali, apesar do avançar das horas. Algo a prendia, sem dúvida alguma.
Passada esta azáfama inicial, característica dos grupos onde alguém de novo chega, os dias retomaram o seu curso e Lírico, Sol Sustenido e Lezíria, os companheiros do costume, voltam aos passeios de fim de tarde e noite. Ainda assim, a cadência normal era aqui e ali alterada pela visita de Piluça, com o seu sorriso incessante e ar saltitão.
Certa tarde, andava o nosso Lírico embrulhado nos seus pensamentos, quando ouve um chamamento "Olá, está bom o senhor?", visivelmente espantado, vira-se para trás e num ramo ligeiramente acima do seu, estava Piluça, pousada com um sorriso maior que o próprio bico. "Podes tratar-me por tu", respondeu. E pronto, a partir desse dia passaram a dar, a espaços, de forma muito recatada, longos passeios rente ao riacho e pelos ramos das árvores frondosas que se estendiam a perder de vista. "Pequenos eram os olhos para absorver tão grande mundo, mas uma alma enorme está por trás dos mesmos" pensava para consigo Lírico cada vez mais absorvido por aquele olhar vivo e por aquela graça, que parecia irradiar daquele ser que lhe havia prendido o olhar deste o primeiro instante e que contagiava tudo à sua volta. E lá correram os dias. A espaços, a cigarra, dizia " Não fujas ao que está à vista de toda a gente" sendo que a raposa, aparentemente descarada e desbocada, revelava-se mais prudente e raramente adiantava o que quer que fosse face ao enredo que subtilmente se desenhava ao sabor da velocidade dos dias. Ainda que sobre a mesma história, esses tinham velocidades diferentes para cada um dos envolvidos. Para o par de estorninhos, as horas pareciam-lhes curtas, demasiadamente curtas, mas aos restantes, perfeitamente normais. Eis que numa noite de verão, Lírico, canta para Piluça e declara-se de forma séria e convicta, aquela forma de quem sabe o que quer e como quer, longe do instinto e da frugalidade, de forma romântica e apaixonada. A princípio, o encantamento parece ser correspondido. Porém, chegado o meio da estação, o resultado não é o esperado, piluça retrai-se "Não estou preparada, o mundo é enorme; fiquemos amigos" e parte para junto da família. As lágrimas caem pelas plumas de Lírico, enquanto pia à lua incessantemente. Cá de baixo, tal como lá de cima, há quem observe (mistérios da existência) e a prudente Lezíria, não abordando o assunto, (sim porque é um erro catalogar a raposa de metediça. É antes atenta só se mete com a segurança de quem ataca a presa na hora certa) incentiva-o e acompanha-o, sempre. E corre a estação, Lezíria a companheira, Sol Sustenido o companheiro.
Aproxima-se o final do verão e os bandos de estorninhos começam a regressar ao pasto de Lírico, Sustenido e Lezíria e eis que num dia regressa Piluça, alegre e saltitante como sempre, cumprimentando-os de imediato e demonstrando alguma reserva e distância para com Lírico. "Como te sentes" questiona a cigarra, "bem, muito bem" responde Lírico disfarçando para meio mundo a amargura que lhe corria no peito, até pelo comportamento de Piluça para com ele. Já Lezíria, não fugindo ao seu ser próprio, reserva-se, observa e acompanha, sempre, como é seu apanágio. Os dias correm à sua velocidade normal. Sim, agora as velocidades eram todas iguais, não significando isto monotonia, muito pelo contrário, pois aos três amigos, havia um rol de animais que se lhes juntava em companhia e faziam, a espaços, uma festa no sítio mais alto do pasto, a que Piluça não chegava a horas ou pura e simplesmente não ia. Lírico mantinha-se firme, firme por fora, dilacerado por dentro. Era contudo uma ave forte e bem acompanhada.
E os dias foram correndo e com eles o tecer da vida. A alegria e a paz pareciam ter voltado àquele grupo, atarefado em realizar um festival de outono, onde alguns participaríam mas todos seriam convidados a assistir e, claro está, ao repasto que lhe seguiria. Piluça parecia regressar ao grupo, mas sempre com avanços e recuos, notando contudo que a atenção de Lírico já não era a mesma e não podia mesmo ser, pois o coração de uma ave é frágil e magoa-se com muita facilidade, se bem que esta fosse "de boa cepa, mas não de ferro" como lhe costumava dizer a amiga Lezíria, fiel companheira. Já Sol Sustenido, desconhecedor da dor que lhe cortava o peito, admirava a sua altivez e independência, bem como a sua capacidade de resistência, perguntando-lhe repetidas vezes "Como é que consegues? Gostava de ser assim, apesar de continuar a achar que te negas e castigas em demasia". Apesar disso, era clara a desconfiança em tamanha força.
Volvido algum tempo, numa dessas noites de folia, no sítio mais alto do pasto, Lírico, embalado pelos festejos em torno do aniversário da fiel companheira e pelos olhares e permissões do seu amor, embora de forma sempre subtil, baixa a sua guarda e canta a plenos pulmões o seu amor em forma de serenatas, acompanhado pela melodia de Sol Sustenido. Contrariando todos os anseios, esse amor, não só não foi correspondido como foi questionado: "Amor, como pode ser amor?". Foi o golpe fatal! Lírico sentiu-se atingido no seu coração e na sua alma. Por entre a confusão e sem que ninguém perceba, volta-se para Piluça e diz-lhe "Achas mesmo que não é amor, pões em causa o meu sentir e a minha razão? Não te preocupes em responder pois esta dor termina hoje. Tens daqui até ao momento em que eu pousar no meu ramo para pensares no que queres para a tua vida. A partir desse momento, aceito-te para sempre só como amiga e sem voltar atrás." Tremeu ao pronunciar tais palavras e questionou a sua própria decisão, mas foi ganhando força ao ver que Piluça, a forte piluça desfalecia a cada sílaba, abrindo o seu bico enquanto ficava estupefacta com o que ouvia.
E a noite correu e terminou. Quando se preparava para dormir, Lírico ouve um ruído à porta do seu ninho. Pensa duas vezes, não resiste e saí. Era piluça, iluminada pelo Lua, pela lua e pela graça que caracterizava a sua beleza e forma de ser. Nisto, coloca a sua asa por cima da de Lírico que a estende quase sem resistência e diz " Tens de ter paciência, preciso de tempo, mas é de ti que gosto. Tem calma e dorme descansado. Falaremos com calma com o raiar do sol, o renovar do dia." Lírico, baixa a cabeça, pensa e repensa, no que resultou um momento suspenso, de reflexão. De seguida, levanta a cabeça e responde "Sim, claro, conheço-te desde sempre. Ainda antes de te conhecer, já te conhecia e não tenho como dizer que não".
E assim termina, ou melhor, se inicia a história de amor entre Lírico e Piluça, um casal de estorninhos, que se encontrou num pasto banhado por um riacho.
Consta que, ainda hoje, se tratam por queridos, mesmo quando discutem,e dormem asa com asa, no conforto do ninho que é o deles.
"Sou um lobo solitário, é isso mesmo, sou um lobo solitário", pensava para com os seus botões o Estorninho, enquanto lavava a sua bela plumagem cinzenta e observava a azáfama dos demais, ajeitando os respectivos ninhos. É claro que estamos perante a um Estorninho com grandes problemas de identidade, assim parece, mas o que se passava é que o Estorninho em questão queria o amor verdadeiro, eterno, para lá da duração da estação da paixão. "Contrarias assim a tua essência", dizia-lhe a cigarra Sol Sustenido, assim apelidada pelo mocho, pois sempre que tentava dar a famigerada nota, falhava no abanar de patas. "És demasiado exigente contigo próprio, não podes ser assim" dizia-lhe a cigarra, aquando das suas intermináveis conversas que se estendiam noite dentro. Mais um final de tarde chegava e o Estorninho, regressado do rio, de plumagem limpa e arrumada, coloca-se no seu ramo e pensa " Sou um lobo solitário". Era mais um fim de tarde, como tantos outros, de sol radiante, vermelho, anunciando já o final da Primavera e o princípio do Verão. Num bando de estorninhos acabados de chegar, eis que a nossa ave vislumbra uma estorninho. Então, estica o seu pescoço e observa, mas rapidamente recua, voltando à sua costumeira calmaria, não conseguindo contudo disfarçar a prisão do olhar, aquele olhar que não engana, que foi tomado por um sentimento impossível de fugir ou de ignorar. "Eu conheço esse olhar", exclama Sol Sustenido, "Eu conheço esse olhar.....", volta a dizê-lo, abanando as suas patas e emitindo aquele som que rapidamente identificamos e gostamos de ouvir quando passeamos pelos campos ou nos deitamos a gozar o sol abraçados pela suavidade natural da seara. "Cala-te, não quero ouvir isso, sabes que não posso, não quero e não posso", mas o vislumbre daquela estorninho não mais saiu da sua cabeça e rapidamente começou a conquistar aquele coração, que para o amor queria-se de pedra.
Os dias foram passando, no seu passo cadenciado, sem nada de muito novo, sem nada de muito velho e o verão finalmente chegou. O estorninho, durante o dia, ia observando a sua estorninho, sem fazer o que quer que fosse. À noite, passeava de ramo em ramo com a cigarra, conversando sobre tudo e sobre nada. Numa dessas noites, por sinal extremamente quente, enquanto conversavam, o Estorninho e a Cigarra, junto ao ninho do mocho, eis que passa a estorninho, a esvoaçar, calmamente, aproveitando as correntes quentes para planar. Imediatamente, como que toldado por uma qualquer manifestação de beleza natural, daquelas que paralisam o comum dos mortais e quase o cegam, o nosso estorninho perde o pio, ficando impávido e sereno a olhar para aquela ave que esvoaçava elegante à sua frente, saltitando de ramo em ramo, com aquela graça digna dos deuses e dos predestinados. Nisto, a estorninho faz uma volta no ar e aproxima-se "Olá, eu sou a Piluça,e sou uma estorninho" e larga-se num sorrir desenfreado, que é como quem diz, piar de um certo modo específico que na tradução de "piez" para "humanez" equivale a sorrir. " Vocês, quem são?" A cigarra, na sua natural musicalidade, logo respondeu " Sol Sustenido é o meu nome, mas diz-me, Piluça, que raio de nome é esse?" E, novamente, soltando-se num riso desenfreado, a estorninho responde, "Peluche que é um urso, Piluça, pois sou fêmea" e novo riso desenfreado. Entretanto, ambos viram o seu olhar para cima e observam o Estorninho impávido e sereno e a Piluça comenta baixinho "Quem é este quem nem olá disse?" "É o Lírico, baptizei-o eu", "Lírico, muito bem, mas o que ele é, é arrogante, ali de pescoço para o ar, sem nada dizer."
"Não falas tu", questiona a Piluça, entre um bater de asas e esticar o pescoço. "Olá, desculpa, não reparei que tinhas chegado e, como a cigarra falou, optei por aguardar. Sou o Lírico" responde o estorninho, entre um sacudir de corpo e inchar de peito, que nada tinha de vaidade ou arrogância, mas antes de auto-defesa, pois mal sabia a Piluça o que lhe já ia na alma. Mas ele não podia, não podia. Sem adivinhar tal coisa, Piluça volta a sussurar com a cigarra " Que arrogante!, minha nossa, que paciência, deve ter o rei na barriga" ao que o Sol Sustenido responde "Não tem não, é aliás muito divertido, apenas não te conhece, olha, repara quem vem lá, a raposa Lezíria. Rapara como a cumprimenta!" .Lírico, observando Lezíria que se aproxima, salta do seu ramo aterrando directamente no seu dorso: "Olá minha amiga, que tal vai isso, há muito que não se deixava ver" ao que a raposa responde "Há muito?! Paspalhão! Ainda ontem estivemos de conversa até às tantas... mau mau maria, que te apoquenta, já te conheço. Vá, desembucha". "Irra, dormiste mal ou caiu-te mal a galinha do almoço?! Disfarça minha atrevida desbocada, não reparaste quem nos olha?". Curiosa, a raposa Lezíria, olha para cima e para o lado e exclama "A cigarra eu reconheço, os olhares do costume, mas quem é aquela, que não pára de rir?" Depois de dizer isto, olha de novo para o Lírico, que se encontrava completamente embevecido a olhar para a estorninho. O seu olhar era o de um perdido, completamente perdido e tomado pelo dia. "Olha, olha, passarinho na gaiola, está bonito está.. Acorda pardalinho, quem é aquela?" Estorninho, o Lírico, recupera-se, julga ele, pois que nada escapava à raposa e diz "Não sei, diz que se chama Piluça, já viste que nome, Piluça, isso lá é nome de gente...", "Não é gente, felizmente, é uma ave e entre nós, essas convenções dos nomes não existem. Só a beleza e o sonho valem e e não disfarces que a mim não me consegues esconder nada". Dito isto, empinando o pescoço para cima diz "olá, disseram-me aqui à orelha que te chamas Piluça", "sim, chamo", respondeu a piluça entre mais um par de sorrisos. Ouvindo a conversa, a cigarra, voltando-se para a estorninho diz "vês, vês como é simpático?". Não se mostrando convencida, a estorninho contesta " Não me convence, é arrogante e antipático", mas tal como o Lírico, não conseguiu disfarçar o impulso que a levava a não arredar pé dali, apesar do avançar das horas. Algo a prendia, sem dúvida alguma.
Passada esta azáfama inicial, característica dos grupos onde alguém de novo chega, os dias retomaram o seu curso e Lírico, Sol Sustenido e Lezíria, os companheiros do costume, voltam aos passeios de fim de tarde e noite. Ainda assim, a cadência normal era aqui e ali alterada pela visita de Piluça, com o seu sorriso incessante e ar saltitão.
Certa tarde, andava o nosso Lírico embrulhado nos seus pensamentos, quando ouve um chamamento "Olá, está bom o senhor?", visivelmente espantado, vira-se para trás e num ramo ligeiramente acima do seu, estava Piluça, pousada com um sorriso maior que o próprio bico. "Podes tratar-me por tu", respondeu. E pronto, a partir desse dia passaram a dar, a espaços, de forma muito recatada, longos passeios rente ao riacho e pelos ramos das árvores frondosas que se estendiam a perder de vista. "Pequenos eram os olhos para absorver tão grande mundo, mas uma alma enorme está por trás dos mesmos" pensava para consigo Lírico cada vez mais absorvido por aquele olhar vivo e por aquela graça, que parecia irradiar daquele ser que lhe havia prendido o olhar deste o primeiro instante e que contagiava tudo à sua volta. E lá correram os dias. A espaços, a cigarra, dizia " Não fujas ao que está à vista de toda a gente" sendo que a raposa, aparentemente descarada e desbocada, revelava-se mais prudente e raramente adiantava o que quer que fosse face ao enredo que subtilmente se desenhava ao sabor da velocidade dos dias. Ainda que sobre a mesma história, esses tinham velocidades diferentes para cada um dos envolvidos. Para o par de estorninhos, as horas pareciam-lhes curtas, demasiadamente curtas, mas aos restantes, perfeitamente normais. Eis que numa noite de verão, Lírico, canta para Piluça e declara-se de forma séria e convicta, aquela forma de quem sabe o que quer e como quer, longe do instinto e da frugalidade, de forma romântica e apaixonada. A princípio, o encantamento parece ser correspondido. Porém, chegado o meio da estação, o resultado não é o esperado, piluça retrai-se "Não estou preparada, o mundo é enorme; fiquemos amigos" e parte para junto da família. As lágrimas caem pelas plumas de Lírico, enquanto pia à lua incessantemente. Cá de baixo, tal como lá de cima, há quem observe (mistérios da existência) e a prudente Lezíria, não abordando o assunto, (sim porque é um erro catalogar a raposa de metediça. É antes atenta só se mete com a segurança de quem ataca a presa na hora certa) incentiva-o e acompanha-o, sempre. E corre a estação, Lezíria a companheira, Sol Sustenido o companheiro.
Aproxima-se o final do verão e os bandos de estorninhos começam a regressar ao pasto de Lírico, Sustenido e Lezíria e eis que num dia regressa Piluça, alegre e saltitante como sempre, cumprimentando-os de imediato e demonstrando alguma reserva e distância para com Lírico. "Como te sentes" questiona a cigarra, "bem, muito bem" responde Lírico disfarçando para meio mundo a amargura que lhe corria no peito, até pelo comportamento de Piluça para com ele. Já Lezíria, não fugindo ao seu ser próprio, reserva-se, observa e acompanha, sempre, como é seu apanágio. Os dias correm à sua velocidade normal. Sim, agora as velocidades eram todas iguais, não significando isto monotonia, muito pelo contrário, pois aos três amigos, havia um rol de animais que se lhes juntava em companhia e faziam, a espaços, uma festa no sítio mais alto do pasto, a que Piluça não chegava a horas ou pura e simplesmente não ia. Lírico mantinha-se firme, firme por fora, dilacerado por dentro. Era contudo uma ave forte e bem acompanhada.
E os dias foram correndo e com eles o tecer da vida. A alegria e a paz pareciam ter voltado àquele grupo, atarefado em realizar um festival de outono, onde alguns participaríam mas todos seriam convidados a assistir e, claro está, ao repasto que lhe seguiria. Piluça parecia regressar ao grupo, mas sempre com avanços e recuos, notando contudo que a atenção de Lírico já não era a mesma e não podia mesmo ser, pois o coração de uma ave é frágil e magoa-se com muita facilidade, se bem que esta fosse "de boa cepa, mas não de ferro" como lhe costumava dizer a amiga Lezíria, fiel companheira. Já Sol Sustenido, desconhecedor da dor que lhe cortava o peito, admirava a sua altivez e independência, bem como a sua capacidade de resistência, perguntando-lhe repetidas vezes "Como é que consegues? Gostava de ser assim, apesar de continuar a achar que te negas e castigas em demasia". Apesar disso, era clara a desconfiança em tamanha força.
Volvido algum tempo, numa dessas noites de folia, no sítio mais alto do pasto, Lírico, embalado pelos festejos em torno do aniversário da fiel companheira e pelos olhares e permissões do seu amor, embora de forma sempre subtil, baixa a sua guarda e canta a plenos pulmões o seu amor em forma de serenatas, acompanhado pela melodia de Sol Sustenido. Contrariando todos os anseios, esse amor, não só não foi correspondido como foi questionado: "Amor, como pode ser amor?". Foi o golpe fatal! Lírico sentiu-se atingido no seu coração e na sua alma. Por entre a confusão e sem que ninguém perceba, volta-se para Piluça e diz-lhe "Achas mesmo que não é amor, pões em causa o meu sentir e a minha razão? Não te preocupes em responder pois esta dor termina hoje. Tens daqui até ao momento em que eu pousar no meu ramo para pensares no que queres para a tua vida. A partir desse momento, aceito-te para sempre só como amiga e sem voltar atrás." Tremeu ao pronunciar tais palavras e questionou a sua própria decisão, mas foi ganhando força ao ver que Piluça, a forte piluça desfalecia a cada sílaba, abrindo o seu bico enquanto ficava estupefacta com o que ouvia.
E a noite correu e terminou. Quando se preparava para dormir, Lírico ouve um ruído à porta do seu ninho. Pensa duas vezes, não resiste e saí. Era piluça, iluminada pelo Lua, pela lua e pela graça que caracterizava a sua beleza e forma de ser. Nisto, coloca a sua asa por cima da de Lírico que a estende quase sem resistência e diz " Tens de ter paciência, preciso de tempo, mas é de ti que gosto. Tem calma e dorme descansado. Falaremos com calma com o raiar do sol, o renovar do dia." Lírico, baixa a cabeça, pensa e repensa, no que resultou um momento suspenso, de reflexão. De seguida, levanta a cabeça e responde "Sim, claro, conheço-te desde sempre. Ainda antes de te conhecer, já te conhecia e não tenho como dizer que não".
E assim termina, ou melhor, se inicia a história de amor entre Lírico e Piluça, um casal de estorninhos, que se encontrou num pasto banhado por um riacho.
Consta que, ainda hoje, se tratam por queridos, mesmo quando discutem,e dormem asa com asa, no conforto do ninho que é o deles.