domingo, fevereiro 28, 2010

Cartas de um Naufrago - 5ª entrada

Boa noite,

Desde já as minhas humildes desculpas pelas demoras nas publicações das Cartas de um Naufrago, mas as folhas estão de facto muito degradadas, pelo que exigem que os trabalhos de leitura, que são também de recuperação, decorram a um ritmo muito lento, fruto do cuidado exigido. Muito obrigado.

Segue a 5ª entrada do diário

«Algures no meio do nada, pelo final da tarde, mas cada vez mais de regresso a mim,

Os dias correm na sua velocidade normal, sem nada de novo, nem nada de muito velho, pois é assim o tempo, não tem tempo, pois que o é na sua totalidade. Tomaríamos nós podermos ser como ele. Nesta passagem dos dias, vou-me remetendo cada vez mais às memórias, ao feito, ao vivido, pois que o que me rodeia, neste meu isolamento, não havendo interacção não pode produzir uma construção, futuro, continuidade. Essa agora cabe-me a mim, neste monólogo, até aguentar ou até partir, seja daqui, seja ficando aqui e partindo para uma outra realidade. Resistir ou partir, enfim, a nossa condição.

Ultimamente, de cada vez que deambulo pelos caminhos da memória, a ideia de liberdade não me sai da minha cabeça. Antes desta tempestade que me arrastou para este local, só a ideia de perder a "minha liberdade" assustava-me, sendo que cheguei a recear que a mesma se tornasse um vício. Mas que é enfim a liberdade? Pergunto-me isto, porque nesta minha condição não estando preso a nada que não a mim, sinto-me o mais apertado dos prisioneiros. Sim, posso fazer tudo o que me apetece, mas para onde me conduz isso? Posso gritar, escrever na temporalidade da areia, que dura o espaço de um ir e vir da ondulação, o que me apetecer, mas onde me conduz isso? Quem me apoia, quem me reconhece, quem me critica, quem me abraça, quem me protege, com quem choro, com quem riu? Estou absolutamente livre, estou absolutamente refém, refém daquilo que temos de mais fraco, a nossa pura "perantidade "nós próprios, o estar aqui, a sós connosco, onde já nem Deus nos vale, pois que o meu coração, onde ele reside, ficou mudo.

Não posso crescer, não posso ser repreendido, encaminhado, aconselhado, refreado., impulsionado. Sou como um cavalo à solta, mas ao contrário do cavalo cujo instinto o leva a correr e a sobreviver, o meu ser racional precisa de mais, precisa de ti, precisa de mim, precisa de nós, para viver, pois que sou mais que o domínio do próprio. Sim, descobri, sou mais livre estando num sistema e todo o trabalho do humano deve ser sobre o sistema e nunca sobre a inexistência do mesmo. Vejo-me assim perdido e encontrado numa ilha chamada Eu, sim é o melhor nome que lhe posso dar.

Preciso de um amigo, o monstro precisa de um amigo, precisa de uma consciência externa, pois o coração está mudo.

Nestes meus passeios pela ilha na qual me encontro, percorrendo os caminhos outrora percorridos por alguém, descobri uma espécie de escultura em madeira. Podem ser os meus olhos a iludir-me e não passar apenas de uma árvore rasgada por um raio, ou por outro acontecimento natural qualquer, mas para mim é uma escultura e será doravante o meu amigo e conselheiro. Arranjei umas ervas secas e coloquei-as no topo da "escultura", dando-lhe o aspecto de possuir uma farta cabeleira loura. Engraçado, a voz da minha consciência espelhada por uma cabeleira loura. Um pouco de humor nesta lassidão.

O sol põe-se no horizonte, não se vislumbra nada, não corre uma aragem que seja. O céu está de um azul maravilhoso que emparelha na perfeição com o mar. A ondulação abraça suavemente as margens da praia onde me encontro sentado, a mordiscar uma peça de fruta. Estou só e quero ser livre, e para tal preciso de mim. Quero sobreviver para poder viver. Vou erguer-me e renascer, para poder ser livre, partir daqui para chegar a ti, meu porto, de braço dado comigo.

[...]

ML»