«Everything about him was old except his eyes
and they were the same colour as the sea and were
cheerful and undefeatead.»
Ernest Hemingway, The Old Man and the Sea
Lisboa, 3 de Abril de 2006, numa cadeira da faculdade
Ao longe, o mar
Não tinha os olhos azuis, antes pelo contrário, eram castanhos, pequeninos, curiosos, de "boxeur" como ele dizia, pois adorava boxe, mas seguindo o ponto de vista de David Lynch, no seu filme Dune, no qual os Fremen - o povo do deserto - ficavam com os olhos azuis em virtude do contacto com a especiaria, isto é, identificavam-se fisicamente com a sua vida, com a sua forma de estar (ou seja, tornavam-se aquilo que eram em virtude daquilo que faziam, havendo nesse sentido uma essência que se constrói por metamorfose) então os seus olhos tinham o mais profundo dos azuis.
Faz hoje oito dias que partiu, que agarrou nos remos pela última vez e zarpou, rumo ao horizonte, lá onde o céu se mistura com a terra. Ajeitou o seu boné, a "minha cabeça" como tantas vezes disse, sorriu e disse até logo. De certeza que está com duas ou mesmo três pescas na mão e ainda consegue remar, sim, porque o seu motor de bordo só serve mesmo para "ir com a enchente e regressar com a vazante". Era o que nos respondia quando nos referíamos ao pequenino motor de dois cavalos. Respostas de teimoso e de gozão, de anzol como lhe chamavam.
Era assim na vida e não só nas respostas. Era teimoso e discutia cada assunto de forma convicta e inflexível, sem ceder um milímetro. Ouvimo-lo argumentar muitas vezes que "só é penalty porque é contra o Benfica" ou "na Madeira sobe-se mais do que aquilo que se desce". Era de exasperar. Mas até dessas coisas tenho saudades. Pela primeira vez em quatro anos, isto fora todos os almoços de fim-de-semana, ou durante a semana, quando mandava chamar os netos porque tinha peixe fresco para o nosso almoço, estou sozinho em casa. Já não lhe escuto a bengala, já não lhe escuto as lamúrias pela doença, nem pela sua já ida Maria, já não espreito no quarto para vê-lo a fazer ginástica com o braço paralisado. Já não lhe escuto os elogios que me fazia quando vestia o traje "eia, todo nito, és elegante e deves ter muitas atrás de ti. Isso fica-te bem é a ti e não àqueles gordos malfeitos" ao que respondia chamando-lhe velho atrevido e dando-lhe um carolo na careca. Já não oiço mais a perguntinha da praxe se o jogo de futebol que ia jogar "dava na televisão e em que canal". Sinto saudades da bisbilhotice de cada vez que ia sair e me perguntava "onde vais e a que horas vens? ..... Para Lisboa, a esta hora, já tão tarde, não vais fazer boa.." e eu que detesto que me perguntem o que quer que seja. Já não o levo às sardinhas nem ao choco frito, onde discutia comigo ao milímetro quem comia mais e me rebentava os nervos com as horas, sim porque qualquer hora depois do meio-dia dava direito à piadinha das "três da tarde" e de "já comeram o peixe todo".
Na fase final da doença, voltava-se contra mim muitas vezes, ao que lhe respondia que já não era ele a falar e que se acalmasse. Recuperava, pedia-me desculpa, dava-me a mão e dizia "vamos ficar amigos que gosto muito de ti". Muitas vezes perdi a cabeça, sentia falta de capacidade para tamanha aberração do ser humano e almadiçoarei esses momentos para sempre.
Foi assim o dia a dia com o meu lobo-do-mar, do céu ao inferno, o meu boletim meteorológico. É duro para o ser humano experienciar as regras da vida através de acontecimentos com os que mais gosta. Somos um mau laboratório, com emoções, e é muito nazi sofrer à proporção do amor sentido, mas a vida é mesmo assim. Era um amigo, um companheiro, um pai, foi tudo, ajudou-me e preocupou-se até ao fim. Nos últimos dias pediu-me a morte por mais de uma vez, ao que respondia "não está nas minhas mãos meu velho, está nas mãos de Deus, senão dava-ta, para partires em paz, meu velho". Dizia isto com dor, mas de bom grado, pois já não era viver, tamanha energia, tamanho vigor, não mereciam estar ali presos naquele resto de corpo, naquela mente 90% já ida. E a hora dele chegou e fui assaltado pelos maiores terrores, pela perda, pelo irremediável. Já não o verei mais, terei de me reduzir à chaga da memória, que falta de poder este. A vida é maravilhosa, já as suas leis não têm especial piada.
Naquela noite, em que a respiração já era ofegante e em que a sua alma já havia partido, fui dar-lhe um adeus antes de me ir deitar, sem que a crença de que iria resistir me abandonasse. Mas a respiração, o não se manifestar, a sonda cheia e até o nervoso miudinho do cão que teimava em não abandonar os pés da cama, não me davam margem para grande esperança. Era a crónica de uma morte anunciada, era a gadanha que estava prestes a cair face ao eminente xeque-mate.
Mas a crença, a crença, a esperança, é onde se joga o horizonte de possibilidade do humano e nunca nos abandona e quando o faz é o caos, é o fim. Tinha-me ido meter com o velhote durante a tarde, desafiá-lo para a pesca, pois de cada vez que me ausentava, no regresso ia sempre meter-me com ele. Depois de chamá-lo algumas vezes e de lhe dar a mão sem resposta anímica, disse "já cá não estás meu velho".
A minha mãe, que não o deixou um minuto (coisas de mãe), entrou-me dentro do quarto às 03:15 e disse-me que o avô havia partido. Fui vê-lo, tapei-o e fui repousar. Xeque-mate, perdeu finalmente o jogo. Ali ficou, inerte, até ao raiar do dia, mas já não era o avô, já não havia o sopro. Olhava-o de alto a baixo, procurava um franzir de olhos, imaginava que via o peito a mover-se, mas era do cansaço, do desespero e da .... Esperança. Havia mesmo partido. Eram 11 horas quando o foram vestir e buscar. Depois de vestido, enquanto tratavam de tudo que se relacionasse com a transladação, coloquei-me na cabeceira da cama a conversar com o meu velho, mas não me respondia. Ofereci-me para o carregar, mas não me deixaram... só não o queria deixar partir.
Já passaram oito dias e ele teima em não regressar a casa, será que está bem?
«He was still sleeping on his face
and the boy was sitting by him, watching him.
The old man was dreaming about the lions.»
Ernest Hemingway, The Old Man and the Sea